Ontem podia ter sido Natal, mas não foi
Nem vaca nem burro, nem S. José
Nem Maria por mais pecadora que fosse
Ontem podia ter sido Natal, mas não foi
Uma mulher deu à luz num hospital um filho
Com síndrome de abstinência
Pesava três quilos e meio de abandono
50 centímetros de desprezo
Nem vaca, nem burro
Ninguém lá estava para o amparar
Nem S. José, que não sabe que é pai
Ontem podia ter sido Natal, mas não foi
Uma mãe toxicodependente, com o ventre rasgado
É uma mãe sempre, ou não?
Acaso Deus faz distinção entre pecadores
No momento de dar à luz?
Pois eu digo:
Nasceu de parto natural
Com três quilos e meio de abandono
50 centímetros de desprezo
Um menino
Ninguém sabe o seu futuro
Pode até vir a ser rei de um reino sujo de sucata
Não lhe restar para comer mais que um fundo de lata
Nele bate um coração, ou não?
Ontem podia ter sido Natal, mas não foi
Nem vaca nem burro, Nem S. José
Só Maria pecadora, com metadona nas veias
E raios, ela não sabe, mas podia
Ai podia muito bem ser Madona do meu poema
Na sua falsa virtude eu plantaria vinhas
Pomares
E num bago de tempo ou romã
Só num
Com todas as letras a ampará-lo
Um menino cresceria como um verbo, muito de mansinho
Muito de mansinho
Deus-menino.