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A vida ensina-nos... *

 
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Sempre gostei de escrever. Mas, tímida como era e preguiçosa como sou, deixava a escrita dentro de mim - eu, por dentro, era um caderno de rascunhos, uma prateleira de livros nunca lidos, só escritos, palavra por palavra, capítulo por capítulo, com o cuidado da emoção e a liberdade da imaginação.

(às vezes, escrevia um poema num segundo ou um livro num dia, ou numas horas, vivendo todos os momentos da história como se os estivesse a ler - mas a isso se resumiam os seus destinos: o de serem lidos antes de serem escritos, e esquecidos para sempre, no limbo dos não nascidos.)

Às vezes, lá copiava uma coisinha ou outra para o primeiro papel que me aparecesse à mão... mas tudo ia dar mais ou menos ao mesmo, só que do lado de fora de mim: uma gaveta que ninguém abria, um bolso dum casaco de inverno, um esconderijo remoto, algures no meio das coisas esquecidas... ou então, pior - a uma fogueira voraz ou à divisão minuciosa em ínfimos pedacinhos.

Sempre fui muito dada a sentimentos, e tudo o que eu escrevia era sobre eles, ou sob os seus efeitos. Um amor de verão, um amor maior que o momento, uma desilusão maior que o tempo, uma alegria, uma tristeza, um sentir, enfim. Alma. No princípio de tudo, estava a alma... era só ouvi-la e escrever, "incorporar-me" nela e ser seu instrumento.

Mas, um dia, conheci a maior de todas as dores. A mais devastadora, a mais inspiradora, para uma alma predisposta, como a minha, a expiar-se em palavras.

E então, comecei a escrever, a escrever, a escrever. Primeiro com raiva, depois com mágoa, depois com saudade, depois com doçura, depois com gratidão, numa espécie de descida a um catártico purgatório, ou numa espécie de subida a um céu de reconciliação.

(tudo era mantido ainda no segredo das minhas mãos; na vida, as preterições necessárias são quase sempre mais que as preferências assumidas… )

Reconheço agora que talvez escrevesse para me consolar; para que, ao ler-me, eu pudesse ter dó de mim mesma; para que, ao reler-me, eu pudesse sentir a carícia das lágrimas a reconhecer-me a mão que embalara um berço… Eu não era poetisa, nunca fui poetisa, não sou poeta ou escritora… simplesmente dava livre curso ao que sentia, mas agora com a sabedoria da Dor.

E foi talvez o que eu pretendi, quando comecei a partilhar e a mostrar o que escrevia: consolação, pena (que mais ousaria eu esperar?...) E foi pena o que recebi de muita gente, mais que admiração, mais que reconhecimento de mérito, espanto ou interesse. Ah, mas não posso dizer que não tenha recebido respeito, isso não! – felizmente e especialmente daqueles que fui aprendendo a admirar. Mas os outros, os alguns tais, mais que tudo, liam e sentiam. “Sinto muito”, era o que queriam dizer, no duplo sentido da expressão, dissessem as palavras bonitas que dissessem (e que eu agradecia e agradeço, com sinceridade). “Sinto muito - porque me fazes sentir”, “sinto muito - porque lamento tanto…”.

É isso que, por norma, se recebe, quando, simplesmente, se partilham emoções, sejam elas dores fortes e reais ou “apatetamentos” de amores mal curados, cheios de reticências e extrapolamentos de palavras. É isso – pancadinhas nas costas, beijinhos na alma. E de alguns, investimento de abraços, na esperança de juro.

(mas eu queria mais, muito mais... Quero resgatar tudo o que aprendi, tudo o que guardei, para merecer mais...)

Felizmente, eu tinha os meus tais livros, nas minhas tais prateleiras dentro de mim. E fui fazendo bom uso deles, rebuscando temas, trabalhando pensamentos, relendo histórias, exercitando as palavras e dando bom uso à Gramática Portuguesa, um livrinho que eu tenho desde os meus tempos da primária – ainda em bom estado, por sinal. Felizmente eu tenho amor à escrita e gosto pelo desafio. Não sou ainda poeta, nem escritora, claro que não. Mas persigo esta Arte com muito respeito. E (ainda assim) com muita alma.

(e, felizmente, tenho comigo quem me continue a ler com interesse genuíno e até, espero eu, quiçá admiração… precisamente aqueles que eu gostaria de ter.)

Mas a verdade, a lição que aprendi, o que afinal eu queria dizer, é que… enquanto (só) inspiramos pena, não ameaçamos ninguém, somos elegíveis para entrar no clube do “beijinho” dos outros alguns tais.
Mas quando nos aventuramos “para fora da alma”, num mais sério e abrangente desafio literário… das duas uma: ou provocamos tamanho mal-estar nos “outros alguns tais”, a ponto de sermos banidos do clube, como falsos profetas... ou... ganhamos asas.

(…onde é que guardei eu as minhas asas…?)




Teresa Teixeira


*a escrever, também.
 
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Sterea
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Enviado por Tópico
jessicaseventeen
Publicado: 27/01/2013 02:20  Atualizado: 27/01/2013 02:21
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 Re: A vida ensina-nos... *
Passei tarde - mas sempre a tempo

Como a entendi...

S-i-l-ê-n-c-i-o
e
Admiração!

Tome a Arte da escrita como sua
Sem (se) definir algo - para quê?!

O Universo encarregar-se-á de dar rumo às suas asas
(Não queira nem saber mais do que Ele)

Agora voo também!

Beijinhos na alma e no coração,

Jessica *



Enviado por Tópico
GabrielaSal
Publicado: 27/01/2013 02:27  Atualizado: 27/01/2013 02:27
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 Re: A vida ensina-nos... *
não imagino a dor que tenha passado
mas só posso dizer que deu vôo a uma
linda alma.
escrever é uma catarse, um exercício
constante de aprendizado, não só no modo
de escrever, mas na leitura de nossa
própria alma.
suas asas estão aí - toque-as, e continue
a voar.
Belíssimo texto!
.•´¸.•*´¨) ¸.•*¨)
(¸.•´ (¸.•`*´ Gabi


Enviado por Tópico
fotograma
Publicado: 27/01/2013 02:28  Atualizado: 27/01/2013 02:28
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 Re: A vida ensina-nos... *
loguei só pra comentar este

embora eu seja sempre breve, não vou deixar mero "interessante" pois concordo com a Sandra de que textos como esse merecem bem mais. e mais não vou dizer, pois não me sinto a altura de dizê-lo

posso apenas dizer que foi forte, bem escrito e que é um texto com uma verdade universal, não necessariamente restrita à escrita

primorosa sua linha de raciocínio

abs


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 27/01/2013 03:18  Atualizado: 27/01/2013 03:18
 Re: A vida ensina-nos... *
Coleciono alguns escritos (ou dores), ainda só não sei como pô-los pra fora de forma que ninguém "sinta muito".

Seus textos me lembram tanto a Clarice Lispector, pelo modo como os teus sentimentos parecem fazer quem lê olhar para dentro de si mesmo. Se não é escritora, pelo menos tem o dom de tocar as pessoas com palavras.

Boa noite...


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 27/01/2013 11:09  Atualizado: 27/01/2013 11:11
 Re: A vida ensina-nos... *
Bom Dia Sterea

pois, foi com muita atenção que li este teu texto, que é um libertar de pensamentos, legítimos e claros, de quem tem um grande amor, mesmo que por vezes, a intervalos, rejeitemos até o amor, digo eu, porque tudo isto é acima de tudo um mar de emoções

reparei que escreveste várias vezes a palavra respeito e isso trouxe-me a fazer este comentário, porque o respeito é tudo o que há de maior, penso

penso também que muitos de nós se revêem nem que seja um pouquito neste texto " a vida ensina-nos..." e muito bem, às vezes a mal, e se não te importas deixo aqui o resto: a sermos humildes

beijo, mas atenção, não é um beijo de beijinhos eheh

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 27/01/2013 12:27  Atualizado: 27/01/2013 12:27
 Re: A vida ensina-nos... *
Olá Sterea,

excelente texto, o titulo 'o encerra' com maestria. Pode ser uma mensagem e/ou um testemunho da experiência vivida ( real ou ficcional).O leitor foi servido de uma iguaria deliciosa...

Acho que escrever é um estado de graça em que enriquecemos todas as nossas vivências(positivas ou negativas) com nossa própria plenitude: o que enxergamos, o que queremos, alimentando nosso élan( energia , disposição). E a Arte( aqui da escrita) é o nosso desejo de transformar todas as imperfeições em (reflexos de) perfeição ( uma superação). Quem ama escrever, frui a si mesmo neste processo transformador - da Arte.


Um abraço

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 27/01/2013 13:18  Atualizado: 27/01/2013 13:18
 Re: A vida ensina-nos... *
Emocionado e emocionante! Guardastes as tuas asas na alma. Por isso não as encontra no plano das coisas vistas. O Fenômeno é privilégio só nosso, seus leitores: vê-la voar, com uma graça, ternura, poesia e plenitude de ser, como neste texto aqui, e poemas, e palavras.
A construção de um escritor, de um poeta é esse diário autoconhecimento, reconhecimento, construção, desconstrução...
Esta, a lição que aprendi. De ti, Teresa.

Bjs.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 27/01/2013 13:37  Atualizado: 27/01/2013 13:37
 Re: A vida ensina-nos... *
Sterea,
Tomo tuas, minhas palavras. Desde criança rabisco e guardo e jogo fora ou releio. Mas para mim, expor é um ato de coragem. Se isso me levará a algum lugar não sei, mas como tu, ainda procuro minhas asas.
"um tapinha nas costas", de leve (risos).
(Forte abraço)
Lápis

Enviado por Tópico
Caio
Publicado: 27/01/2013 13:40  Atualizado: 27/01/2013 13:40
Membro de honra
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Mensagens: 898
 Re: A vida ensina-nos... *
nada, não me vem nada à mente para acrescentar. faz pouco tempo que peguei amizade com as palavras, uma amizade ainda tímida, de fato, mas nos aproximamos lentamente. são melhores amigas que o cigarro ou o café, ainda que indispensáveis no meu estilo de vida, as palavras são mais. o tempo passa e aprendo a amá-las e tento tratá-las com respeito e carinho. elas me divertem, me dão conhecimento, ombros, colo, cafuné. me fazem ver o quão impressionante é a vida e até onde pode ir o pensamento humano. me lembro uma cena do filme "quills", com o geoffrey rush interpretando o marquês de sade. em certa parte do filme, um dos personagens, louco, trancafiado, grita, implora para que lhe dêem pena e papel. uma das citações que marcam é aquela que todos os que escrevem deveriam ter na ponta da língua:

"não há más palavras... há más ações."


beijo, teresa.

não costumo dizer isso quando comento, mas obrigado.

Enviado por Tópico
AnaMartins
Publicado: 28/01/2013 19:32  Atualizado: 28/01/2013 19:32
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Mensagens: 2220
 Re: A vida ensina-nos... *
Hoje sem a habitual "lamechice" do "Mommy" e afins, te digo que compreendo perfeitamente o que dizes sobre as pena, as penas, as pancadinhas nas costas (como eu as abomino"), o uso da escrita como catarse, os grupos e os grupinhos, enfim. A diferença é que não tenho a mesma paixão, sequer a mesma mestria que tens pela escrita.
Tu nasceste com a escrita à flor da pele, e ainda bem que tomas consciencia de ti mesma, da tua força e do teu talento, da mesma forma que tomas consciência de alguma realidades...

Nunca me senti tão orgulhosa de fazer (uma pequenina parte) da tua vida, e acredita, és cada vez mais uma referência para mim. Porque tens uma alma maior que o mundo.

Ana