Contos : 

O rei da chuva

 
Apenas um louco,era o que diziam .O maluco oficial da cidade , se antiguidade na doidice,fosse posto .Cabelos imemorialmente grisalhos, coroando a testa ampla e enrugada , avançada qual promontório sobre dois abestalhados olhos azuis , de olhar triste ;não daquela tristeza dos que têm olhos tristes por profissão (já dizia alguém) , mas uma tristeza que era a toda hora jogada para fora pelos olhos , assim parecia funcionar sua natureza : jogando aquela ganga ruim na cara dos outros , sobre as pedras da rua ; ainda assim uma tristeza intrigante , porque sábia e aparvalhada era o que também parecia e tudo de uma vez só , confundindo as pessoas , que passavam a ve- lo só de baixo pra cima .
Ah , sim : chamavam – no de Biu do Cego ,ironia da vida ou da morte , o possuidor de tão diferentes olhos,filho de um cego .Sentava –se por horas a fio , na ponta da calçada do mercado público,sempre no final da tarde , cismando sabe Deus lá sobre o que , tirando do bolso esfarrapado, grãos de milho catados do chão escuro do mercado ,que atirava no pátio , na festa dos pombos , alternando as mãos,jogando ora por cima da cabeça, ora de costas,por cima dos ombros , arrulhando feito pombo , com a pronta resposta deles , á sua louca generosidade ; vez por outra , um mais afoito segredava-lhe em vôo rente ao ouvido , Biu escancarava aquele riso de porteira velha desconjuntada e a ave partia rápida, em direção ao ocaso do sol .O riso apombalhado - porque não?
Cansava– se ,ás vezes. Dava lugar ao sorriso, um rosto crispado e ausente , angústia demente e silenciosa , barragem de pensamento , sem suspiro pra correr . Nesses dias, parecia desligar – se do mundo , puxando um fio que só ele via ,trepando- se na velha jaqueira da entrada da cidade - quem sabe , pra ele uma saída?
Ali ,matutando horas naquele juízo desleriado e pacífico , naquela doidice de uso só dele mesmo . Depois, dava por encerrada a questão e descia faceiro como um sagüi de tronco abaixo, rindo , homem menino satisfeito consigo mesmo e com o mundo .
Às vezes, alguma mão caridosa ,quem sabe negociando um lugarzinho lá no céu, deixava um de comer pro miserável,.lá entre as velhas raízes ,sem dizer nada; se chamasse ele fazia - se de mouco. Depois, descia , comia e voltava ao seu adoidado filosofar de pé-de-pau .
Não lembro mais quando - já sou promissória vencida nesse mundo de Deus , mas sei que Biu do Cego já estava a quase quinze dias na jaqueira , sem comer nem se mexer . Aboletou –se num galho e disparou um olhar de canhão enferrujado no horizonte , dias , semanas.
Depois , ficou olhando pra barriga , como se tentando entrar em si mesmo pela porta do umbigo . Então, começaram as chuvas ,que viraram aguaceiro , depois cheia , depois flagelo de Deus ou do Diabo contra nós ou eles mesmos , pois não é tudo natureza ?
A correnteza levava tudo : homem, mulher, menino, jumento,todo tipo de criação ,nem a imagem do padroeiro agüentou , o cemitério virou campo sem porteira , ninguém para enterrar os mortos , em muitas léguas . Os políticos vieram , depois que a desgraça já era passada , engravatados, tirando retratos mais deles mesmos que do arraso , muito dinheiro se prometeu . Os poucos sobreviventes ouviam , mas eu sabia que o destino do palavrório era o mesmo do vento que lambia as serras, uma ida sem retorno .
Desci do abrigo do meu roçado no Morro do Agudo e caminhei feito barata tonta , dando voltas, fazendo com os pés o que na cabeça já fazia desde há muito. Na entrada da rua , vi a velha jaqueira , ainda de pé,sabe - se lá se por obra de Deus ou do Tinhoso. Num dos galhos mais grossos , aboletava-se Biu do Cego , chorando de tanto rir.





andrealbuquerque

 
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andrealbuquerque
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 26/01/2013 12:58  Atualizado: 26/01/2013 15:50
 Re: O rei da chuva
Leitura interessante, abraço de luz.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 26/01/2013 13:12  Atualizado: 26/01/2013 13:12
 Re: O rei da chuva
Sua narrativa é impecável. Veio-me à memória, a genialidade de Guimarães Rosa em "Sorôco, sua mulher, sua filha". Muitos são os seus contos tendo como personagens esses seres humanos que não encontram seu lugar no contexto do mundo, os loucos, as crianças...
Gostei imensamente do seu texto, surpreendente.
Abraço,

Sandra.


Enviado por Tópico
FatimaOliveira
Publicado: 26/01/2013 23:43  Atualizado: 26/01/2013 23:43
Super Participativo
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Localidade: Salvador - Bahia
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 Re: O rei da chuva
Amigo André, que história interessante! Sabe? em toda cidade existem doidos de carteirinha, já faz parte. Você narra com propriedade e já percebí que gosta de contos e cônicas. Vou te ler sempre, pois essas são as verdadeiras histórias da vida. Parabéns por socializar histórias tão humanas.
Abraços poéticos.
Fátima Oliveira.


Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 29/01/2013 23:31  Atualizado: 29/01/2013 23:31
Membro de honra
Usuário desde: 25/01/2009
Localidade: Pouso Alegre - MG
Mensagens: 18598
 Re: O rei da chuva
O que me encanta e surpreende é acompanhar teu crescente
que não tem fim. Mas tua sensibilidade é assim: uma suavidade
em palavras. bjs da fã