Manhã de domingo
Dia nublado
A vida acorda sem o instante amarelo e menino do sol
Na rua soa a monotonia dos ruídos dos carros
a encobrir a vida e ignorar a barulhenta certeza
da sandice que o homem acalenta
O homo sapiens sapiens fere a cidade suprimindo o silêncio
e encobrindo a Voz imanente à Alma
E a cidade geme e explode e grita...
Um alarme dispara
para proclamar em voz alta a insensatez humana
Indiferentes à insanidade pássaros cantam
Nas árvores os pássaros aliam-se aos anjos, e cantam,
por que é de ser pássaro cantar
Em algum lugar um bem-te-vi
lança, súbito no ar, o seu mantra:
bem-te-viiii
Outros pássaros se manifestam,
cada um no seu idioma,
encobertos pelo ruído dos carros
São tristezas a vida nesta incessante
dicotomia,
nesta afronta plangente
onde a vida caminha para o ignaro fim
Em algum lugar da cidade nasce uma flor,
em um jardim?
Uma flor irremovível,
que alguém espera
Nasce a flor
e com ela nasce mais um verso
e quando a chuva cair o verso se fará poesia,
independente da ignomínia daqueles para quem
o amor e a poesia têm outra existência,
outro devir que não o de ser amor e poesia
Mas, a flor desabrocha,
por que é do sentido da vida da flor desabrochar
Flor de orvalho e eflúvios de estrelas
mais um acalanto de ternura dos poetas,
mais um milagre em busca do equilíbrio
Nasce a flor e o som da flor nascendo
confunde-se com o som do Universo
expandindo-se e contraindo-se
Há na vida e na morte expansão e contração
Nascer é fazer um pacto silente com a morte
e a cada instante a impermanência entoa, nua,
o cântico cego do tempo a passar indolente
após o giro da ampulheta,
após a intimidade do amor
Após o exílio silencioso da minha face na
candura do teu colo
e dos versos trêmulos
que leio de olhos fechados, com as pontas dos dedos
na manhã nublada de domingo
onde borboletas voejam aprendendo as flores
para apagar as noites crispadas pelo teu nome nos ventos
Os pássaros cantam sonora e comoventemente
compondo a claridade do verão
com a qual o Amor entrará pela minha janela
e o sol se fará
atado ao instante absorto dos meus olhos
(*É a poesia ficando repentinamente como a lembrança
da primeira noite em todas as outras noites...)
*Lêdo Ivo in Poesia Completa - 1940 - 2004