Prosas Poéticas : 

Recordação

 
RECORDAÇÃO



- Menina! Não desce esses degraus, vai que escorrega?
A voz vinha da janela lá do alto e (eu) com irritação de criança, batia o pé e sentava no primeiro degrau da escada escavada na ribanceira. Com o cotovelo na coxa e a mão no queixo, resignada olhava o barquinho avariado balançando na água lá embaixo. Já tinha sido todo azul um dia, mas a tinta descascava e só aparecia um pouco da cor esmaecida. A única parte da ribanceira que não tinha arbustos era onde ficava a escada escavada, nas laterais, os capinzais com florezinhas brancas se sacudiam ao vento. E lá embaixo a alguns metros do rio, também havia uma casinha de madeira sem cor e telhado de palha. Era cercada por coqueiros, cajueiros e mais adiante palmeiras de açaí. O dono do barquinho que dançava amarrado no pequeno trapiche (que era um tablado de madeira com estacas afincadas dentro do rio) devia morar lá. E aquela vontade maluca de descer as escadas saltando com os dois pés, enquanto colhia as ‘florzinhas’ brancas... A vontade de chegar com as mãos cheias delas e entrar no barco libertando-o daquela prisão, pra depois fugir nele descendo o rio e ir deslizando a mão n’ água... Que doído era querer fazer isso, mas os olhos na janela eram extremamente vigilantes. E os pezinhos continuavam a bater no degrau de terra, agoniados, agitados por conta daquele desejo de criança sapeca. O rio corria lá embaixo e alguns barquinhos iam zarpando com a água beirando o convés... Eram minúsculos com seus motores puc-puc indo para longe. O olhar se perdia junto com eles até sumirem dentro do rio. Era assim que imaginava tudo. Pensava que quando os barquinhos sumiam no horizonte era porque eles tinham afundado. sempre sentia vontade de descer a ribanceira e fazer parte daquela paisagem... do trapiche com o barquinho amarrado, da casinhas de palha com as árvores... - Menina, esta na hora de almoçar, vem tomar banho. Quer comer vento é? - Levantava, espanava a sujeira da roupa e corria pra dentro de casa. Depois de tudo, me pendurava na janela e ficava namorando o barquinho balançando... Lá embaixo... No rio, que ficava no pé da ribanceira...



Aquela mania de escrever qualquer coisa que escorrega do pensamento.

Open in new window

 
Autor
MarySSantos
 
Texto
Data
Leituras
1173
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
1 pontos
1
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Migueljaco
Publicado: 13/01/2013 23:41  Atualizado: 13/01/2013 23:41
Colaborador
Usuário desde: 23/06/2011
Localidade: Taubaté SP
Mensagens: 10200
 Re: Recordação
Boa noite Mary, a cabeça de uma criança, por vezes atina coisas impraticáveis.
Parabéns pelo seu contagiante relato, um grande abraço, MJ.