Naquela manhã, o furão, Furavidas, cansado de ser considerado, pelos restantes habitantes da mata, um bicho feio, fedorento e amedrontador, ferido na sua sensibilidade de mamífero carnívoro e caçador, resolveu convocar o conselho da bicharada, resolvido que estava a promover a sua popularidade e melhorar, no que lhe fosse possível, a sua autoestima.
Os restantes animais compareceram à chamada do figurão, armado em fino texugo, um pouco incrédulos com a pertinência daquela reunião, marcada às pressas.
Da copa das árvores apareceram, em primeiro lugar, os pássaros de muitas cores e espécies, acabados de acordar, com aspeto fresco e húmido, de quem saiu de um belo banho, neste caso de orvalho da noite. Num chilreio, uníssono, cumprimentaram o furão, ao mesmo tempo que ocupavam os seus lugares privilegiados nos ramos das árvores, de onde poderiam ver e ouvir tudo o que se iria passar.
De pronto, pousado no galho de um velho carvalho, apresentou-se o mocho Fausto, ave notívaga, que esteve de vigia toda a noite e trazia os enormes olhos amarelados, neste caso avermelhados de sono, ao mesmo tempo que rabujava pelo facto de lhe não ser permitido o direito ao descanso, após cumprir dignamente o turno da noite.
De seguida, compareceram apressadamente, a chinchila, Francisca, acompanhada da família dos coelhos Quinquins.
Logo atrás, morta de curiosidade, a raposa, Laurinda, marcou presença, com o seu ar arguto e atento, de quem não tem tempo a perder, nem é dada a socializar.
Furavidas foi acomodando todos os seus convocados à volta da fogueira, que ardia vigorosa, atestada que estava de achas da mais fina madeira.
Por fim, a tempo de assistir ao início da palestra, chegaram os manos saguins, que trilharam caminho, de liana em liana. Por sua vez, os esquilos, Avelãs, vinham animados a mordiscar nozes e a cuspir escrupulosamente as cascas, enquanto o ouriço cacheiro mais parecia uma bola de picos, o que lhe dava um certo ar de poucos amigos.
Furavidas subiu para um enorme tronco, colocado estrategicamente, por forma a observar as mais diversas reações dos seus convidados, de tão perplexos que todos estavam com o motivo daquele estranho encontro, de tal ordem que muitos deles hesitaram em vir por considerarem tratar-se de uma perda de tempo.
Quando o furão ia dar início à prometida palestra, ouviu-se o ruído arrastado da mais vil representante da mata, a serpente SSSTSSST. Todos os animais se voltaram com as penas, os pêlos e até os picos em pé, de tão arrepiados e eriçados que ficaram com a presença de tão indesejado membro da floresta. Escusado será dizer que o réptil ficou de fora do círculo, previamente formado pelo furão, por repugnância e desprezo dos restantes animais.
Furavidas resolveu, então, fazer uso do direito à palavra, colocando-se no bico das patas traseiras:
- Amigos e conmatenses, agradeço a todos os que se dignaram comparecer a esta minha convocatória. Prometo que serei breve na apresentação do processo de intenções, com vista à implementação de regras de boa convivência.
A passarada agitou-se e os grandes olhos do mocho Fausto esbugalharam-se incrédulos perante o insólito momento. Aquele bicho hiperativo e eremita não podia estar a falar a sério. Vai ver, batera com a cabeça, só assim se justificava expor-se publicamente, em função do bem estar da comunidade animal.
- Como vos digo, sou um animal dado à reflexão e, modéstia à parte, algo filosófico. Concluí numa das minhas muitas meditações, que embora todos sejamos diferentes fisicamente, há algo que nos liga e transforma numa espécie de membros de uma grande família, à qual correntemente se chama “comunidade animal”.
Assim sendo, não vejo porque devamos andar, a maior parte do tempo, de costas viradas uns para os outros. Manda o princípio da educação e do civismo que interagemos uns com os outros, de forma cordial e, se possível, nos ajudemos mutuamente.
Grosso modo, ouviram-se palmas entusiastas, ao discurso empolado de Furavidas, com exceção feita à raposa e à serpente, que logo verbalizaram a sua discordância:
- Nunca ouvi ideia mais estapafúrdia na minha vida. Onde é que já se viu uma raposa assinar um pacto de paz com as suas pretensas presas...
Podem daí tirar o sentido, que, no que depender de mim, não vai sair daqui nenhum acordo assinado. Até porque eu sou um bicho pouco letrado e nem sei escrever o meu nome.
(Que fome que eu tenho!!! Deixem lá esta fantochada acabar, que vão ver...)
- SSSTSSST, SSSTSSST!!! (vociferava a serpente, expondo a sua enorme língua viperina em sinal de irritação). Engulo qualquer um de vós de uma vez só e nem sequer me arrependo quando gritam e me pontapeiam na barriga e tentam sair cá para fora.
Furavidas interrompeu a acesa discussão que entretanto se gerara, apressando-se a explicar a sua teoria:
- Caros conmatenses, imaginem que a nossa mata é alvo de fogo posto. O que faríamos nessa situação?
- Fugiríamos a quatro patas, respondeu Laurinda, a raposa velha.
Furavidas respondeu-lhe com ar académico, olhando-a por baixo dos óculos:
- Talvez tu fugisses,mas e a tua cria? Terias capacidade sozinha para a salvar das chamas, a tempo? E tu, serpente? Ser-te-ia certamente muito dificil sobreviver sozinha, bem como salvar os teus ovos.
Laurinda assentiu com a cabeça e respondeu que nunca havia pensado na possibilidade de poder vir a vivenciar um cenário desses.
SSSTSSS cuspiu o veneno que lhe esverdeava a língua e baixou a cabeça em sinal de perplexidade, o mesmo seria dizer que reconheceu uma fragilidade que, até ao momento desconhecia em si.
O furão percebendo que os animais mais intransigentes já começavam a dar sinais de apreensão, avançou com o teor da palestra:
- Se pensarem bem, aqueles que vos pareciam mais vulnerávies às vossas investidas cegas, são precisamente aqueles que, em caso de calamidade, vos poderiam vir a ajudar e sei que o fariam sem hesitar. Os pássaros, por exemplo, poderiam levar as vossas pequenas crias no bico e deixá-las a salvo.
A serpente que é animal desconfiado e de poucas palavras, respondeu, mordendo a própria língua:
- Confesso que nunca tal me passara pela cabeça.
Furavidas continuou a sua dissertação, acrescentando:
- Como podem concluir, todos nós dependemos uns dos outros. Assim é a vida em comunidade. O que eu pretendo clarificar é que não há animais fortes, nem fracos, porque nada somos uns sem os outros.
Os manos saguins aplaudiam o furão, enquanto se balançavam nas lianas e riam divertidos. De repente, começaram a guinchar nervosamente, apontando para a beira do riacho, que corria a 500 metros de onde se encontravam. Ao virarem-se todos se aperceberam da presença do lobo, Serafim, que não havia aderido à convocatória de Furavidas, mas, que agora os observava escondido e por certo mal intencionado.
Com a presença do predador mais feroz, todos os animais tremiam de medo, com exceção da serpente que se pôs em pé o mais que conseguiu e mostrando-se solidária atreveu-se a enfrentar o lobo Serafim:
- Se avançares sobre qualquer um dos meus amigos aqui presentes, vais-te ver comigo.
Serafim avançou alguns metros na direção do ajuntamento e replicou:
- Deves pensar que me metes medo. Anda exprimentar os meus dentes aguçados e as minhas garras prontas a fazer-te em cem enguias.
- Se eu fosse a ti, não tentava a gracinha. Talvez não queiras saber o dano que te pode causar uma mordidela minha nesse teu pescoço de predador estúpido. Sabes que eu posso ter a espinha bífida, mas em inteligência, ganho-te aos metros que tenho...
O lobo refletiu e resolveu retroceder na sua ideia de atacar o grupo que, sem se ter apercebido, já estava mais unido do que nunca e pronto a dar a vida uns pelos outros.
Pela primeira vez, a serpente foi aplaudida pela sua valentia e por ter posto em risco a sua própria pele em detrimento da vida daqueles, que, até àquela altura, sempre vira apenas como suas potenciais presas. Gostou da sensação calorosa daqueles aplausos e percebeu o quanto é valoroso ter amigos e importante ser querida pelos seus iguais.
Laurinda não se conformando com tais intimidades e farejando ao seu redor instintivamente, resolveu perguntar:
- Isto da solidariedade e cumplicidade animal é muito bonito, na teoria, mas na prática como é que eu encho a barriga?
- Com frutos, sementes, larvas e animais que possam ter morrido de morte natural. Isso também é comum encontrar na mata. Não tens forçosamente que ser tu a matá-los. Compreendes? (replicou Furavidas)
- Então, mas eu sou caçadora por natureza, é algo instintivo para mim. Tudo é uma questão de sobrevivência.
A serpente, recém sensibilizada, respondeu-lhe com humildade:
- É tudo uma questão de mentalização, porque a natureza põe ao nosso dispor uma panóplia de alimentos sem fim.
A raposa ainda não convencida, replicou:
- É como no mar, os peixes de grande porte, também comem os pequenos...
- A verdade é que também se poderiam alimentar de limos e algas, respondeu a chincila.
Laurinda não se dando por vencida, insistia na argumentação contrária:
- Então e os humanos? Que eu saiba comem carne e peixe e quase todos nós vamos parar aos seus pratos e nada mais do que um belo pitéu somos para eles.
Fausto, o mocho, que até então se mantivera calado, resolveu intervir, fazendo juz à sua capacidade de literacia:
- Os humanos não são exemplo para ninguém, consideram-se muito superiores a nós, mas o facto é que estão a anos luz dos animais. Entre eles cresce a animosidade e o ódio, a solidariedade para com o próximo, deu lugar às guerrilhas raciais e políticas. Nada detém a sua ânsia de poder. Os sentimentos negativos, tais como a corrupção e todo o tipo de marginalidade, para atingir fins menos escrupulosos, tomaram conta dos humanos. Cabe-nos a nós mostrar-lhes os verdadeiros valores.
Os aplausos voltaram a ouvir-se, desta feita direcionados ao mocho, que falou por último, mas com muita probidade e sabedoria.
Os animais terminaram a reunião assinando, de livre e espontânea vontade, um acordo de paz e respeito pela vida alheia, lavrado no cartório notarial da mata, onde Furavidas é escrivão e zela com pobridade pelo bem estar dos seus conmatenses.
Escusado será lembrar que Furavidas ficou na estória da mata encantada como o mentor da equidade e do civismo e o seu nome é hoje um ícone de respeito e exemplo para todos os seres vivos que se sintam parte integrante deste mundo que todos partilhamos e deveríamos saber proteger e respeitar.
Maria Fernanda Reis Esteves
52 anos
natural: Setúbal