Ouvi dizer que morreste. Ouvi dizer que foi na passagem para o ano novo, pouco depois das cinco e vinte da manhã. Foi o que disseram; mas para mim, foi ao mesmo tempo em que eu meti as doze passas à boca, e que me bebi regado em champanhe. Que foi ao mesmo tempo em que eu desejei que voltasses para mim.
(Estamos os dois em silêncio no escuro, num sítio só nosso e no entanto no mundo. Pedes-me a mão. Dou-ta como se desde sempre te pertencesse. Juntas as nossas mãos; entrelaças os nossos dedos e apertas forte como se assim nos quisesses para sempre. Mas logo desapertas esse laço facilmente demais e ainda com a tua mão sobre a minha, guias-me até ao teu peito. Sinto o teu coração bater. Sinto o meu ir atrás do teu; ao mesmo ritmo do teu; na mesma sintonia do teu. Sinto a sintonia do mundo e ao mesmo tempo só nós. Apenas nós…)
Olho para o céu e rebentam os fogos. O céu ilumina-se como se beijado por todos os deuses; de tantas cores, de tantas formas, de tanto cheiro a queimado e a mar, de tantos ruídos estranhos quanto a face boquiaberta dos que os olham. Tantos rostos estranhos, tanta gente que eu não conheço. Tu decerto que os reconhecerias de os ver passar na rua, ou os conhecerias agora. Tu decerto lhes lerias os olhos e lhes saberias o que vai na alma. Para ti sempre foi fácil, para ti era simples conhecer alguém; conhecias as pessoas apenas pelo olhar. As pessoas ou têm medo, ou têm coragem, umas mais outras menos; mas todas regidas a esta tua condição.
Foi o que viste em mim… A coragem e ao mesmo tempo o medo. Disseste que existem poucas pessoas com o olhar assim. Também solidão e raiva; viste em mim solidão e raiva.
Quero-te aqui agora!
Bebeste até morrer, foi o que me disseram. Que foste sozinha desajeitadamente pela rua a fora; e que te agarraste aos prédios, aos carros, aos postes e aos bancos, agarraste-te a tudo; e mesmo assim, não conseguiste evitar de cair à mesma velocidade com que sempre te gabaste de te conseguir erguer. Trazias uma mini-saia e um blusão de ganga azuis; por baixo, a camisola de malha branca com uma rena de nariz vermelho que eu te ofereci pelo Natal. Usavas um par de botas de salto alto castanhas enfiadas pelos pés, por cima das meias pretas que tu usavas sempre. Tinhas o cabelo todo emaranhado numa mistura de laca barata e de restos de comida e sangue que deves ter vomitado algures entre os copos dessa noite.
(Fico a olhar para ti. Permanecemos em silêncio… Apetece-me dizer-te milhares de coisas, soletrar letra a letra todas as palavras que sei; declamar-te as frases feitas que repeti em voz alta no caminho para ti. Mas é sempre assim. Sempre que voltamos ao forte velho rodeado por mar que fica algures para o Guincho, ficamos sempre e apenas em silêncio. Tu rodeias-te de silêncio e mistério. E eu sem o som da tua voz, deixo entrar novamente na minha surdez a solidão. Até na viagem de carro para cá ficas assim, estranha; tu mesma e outra qualquer dentro de ti que apenas permanece em silêncio. Os teus cabelos dourados voam ao vento tão rapidamente que parecem querer fugir de algo. Mordes o lábio inferior. Não sei o que estás a pensar. Olho para os teus olhos, tento ler-te no castanho esverdeado mas eu não tenho jeito para essas coisas, para ler pessoas; principalmente ler-te a ti que és mestra a fazê-lo, e a esconder-te, por saberes todos os truques.
Permaneço a olhar para ti só em silêncio.)
Está quase a acabar. Começam agora os fogos mais pequenos e rasos à água; em tons de dourado, verde e vermelho. A seguir vêm os grandes, os mais explosivos, luminosos e barulhentos. “Para acabar como começou…”;
Ouço o senhor da frente dizer em voz alta “…em grande!”.
Será que também tu estás a gostar do espectáculo?
Acho que este ano foi mais fraco que o ano passado. Não sei se pela tua ausência a meu lado ou porque simplesmente faltam mais seis minutos de fogo e foguetes e barulho e festa.
Sei que estás também aqui, algures entre a multidão, enviaste-me uma mensagem há pouco, estás com o teu grupo de amigos; ainda tentei procurar por ti ou pelo rosto levemente conhecido de algum dos teus amigos; mas acabei por desistir quando começaram os festejos.
Encontraram-te às duas da manhã do dia 1 de Janeiro de 2013, no meio do passeio de uma rua em Lisboa que já não me lembro o nome. Estavas estendida perto de uma esquina, caída no meio do chão; tão imóvel quanto uma pedra estranha que não pertence à calçada. Quem te encontrou foi um dos teus amigos que foi à tua procura.
Estendida no meio do chão com a cara chapada numa poça de vómito e sangue, com garrafa de vodka perto da tua mão. Ainda respiravas mas tinhas os sinais vitais já demasiado fracos. Foste dada como morta no hospital às cinco e vinte e dois dessa mesma madrugada. Dia 1 de Janeiro de 2013.
Morreste “…com um braço estendido para a frente.”; foi um pormenor que me contou o teu amigo quando me ligou a chorar já um pouco depois da hora de faleceres.
“Ela morreu meu… Ela morreu…”
Ela não morreu!
Ela não morreu! Ela não morreu! Ela não morreu! Ela não morreu!
Ela não morreu! Ela não morreu…
Não morreste! Não podes ter morrido…
Sempre pensei e tive a esperança que eu morreria antes de ti; deprimido; morto pela saudade e pelo amor; morto pela tua ausência; morto por mim mesmo. Ou então que morreria velho a olhar para o teu rosto já vincado em rugas. Mas tu não! Tu ficarias a chorar por mim, por me perderes e por não me poderes ler a coragem e o medo e a raiva e a solidão dentro de mim; mas ficarias viva.
Foste à minha procura. Disseram…
Bebeste e bebeste, e apesar das tentativas ninguém conseguiu arrancar de ti uma palavra do que é que se passava contigo nessa noite. Apesar de teres sido tu a pedir um tempo de nós, foste incapaz de te separar do caminho que seguíamos os dois. E de te encontrar e seguir o teu próprio curso. Os teus amigos disseram que falavas de mim horas a fio nos bares e nos cafés habituais que o grupo frequentava.
“…com um braço estendido para a frente.” Como se a querer alcançar algo. Talvez o banco uns metros mais à frente para evitares cair; talvez já no chão a grunhir por socorro, ou tentando alcançar a luz dos faróis dos carros que foram passando na estrada.
Talvez tenhas tentado agarrar alguma coisa diferente. Talvez a minha imagem distorcida e disforme no fundo da rua em frente, depois dos sinais; como uma esperança de eu te erguer como sempre fizemos um com o outro.
Às duas da manhã do dia 1 de Janeiro de 2013, dada como morta no hospital uns segundos depois das cinco e vinte e dois; no meio do chão como uma pedra estranha na calçada portuguesa; de braço estendido procurando por mim…
Morta.
(O mar brande o silêncio, ora calmo; ora explosivo. Estamos os dois sentados no meio das rochas sem dizer nada um ao outro. Viras-te para mim, agora com os teus cabelos a voarem-te contra a cara; tomas-me a mão como tua. Sinto o teu peito bater no meu como uma terra estranha a tremer. Olho para a minha mão, avanço até ao teu pescoço; mordiscas o teu grosso lábio inferior, como quando estás nervosa ou vais dizer algo de importante; respiras pelo nariz; enlaço os meus olhos nos teus olhos.
Estou a tentar descobri-los, descodifica-los. Lê-los.
Consigo ler-lhe uma palavra:
“Amo-te!” Dizes em voz alta.
Explosivo… Brilhante! Como o fogo-de-artifício que começa do outro lado da costa.
Quebraste o silêncio…
É hoje, 1 de Janeiro de 2012…)