Poemas : 

Perdido

 
Tags:  distopia  
 
Perdi-me na combustão do dia.
Fui mosca tonta dos pés-sujos,
Mariposa louca e incendiária,
Sensualidade e ávida cupidez,
Fastio feito de misoneísmo,
Dias em que habitam tardes
Quase mortas de passageiros sonolentos
Nos bancos encardidos dos coletivos.
Ah, se alguém gritasse...
Ah, se alguém se incendiasse
E se matasse e explodisse
Uma bomba feita de sangue e dor
De grito e pavor
Ante as basílicas repletas de eco
De cada coração!
Ah! se alguém se sentasse ao meu lado,
Ouvisse-me as queixas e alegrias,
E acolhesse, em compaixão,
Minhas inúteis solicitudes e favores...

Perdi-me no seio forte,
No aroma doce e fétido,
Bêbado do néctar suarento
Que se escorre dos corpos da estiva,
Do soro enjoativo
Dos escritórios e repartições,
Da fadiga odorífica das noites de verão,
Dos pagodes incansáveis dos subúrbios.
Perdi-me no seio da grande cidade
Que grita contra si
Na face muda e silente
Dos que retornam do trabalho.
Perdi-me com o peito arquejante,
Com todos os sentidos e pensamentos alterados
Em noite lúbrica de narcóticos.
Perdi-me sexualmente,
Com o beneplácito de Cristo,
Sem raízes ou entendimento
Na curva acentuada das estradas
Da cidade mundial.

Transviei-me em suas luzes:
Brilhei e me ofusquei entre vapores
Expelidos por canos pretos
De gargantas e escapamentos.
Incendiei-me, louco, consumindo-me,
Consumindo-te
Nas sendas do fascínio e do tédio,
Tonto da mesmice
Das caras sufocadas dos bípedes enfadados
A se rastejarem por concreto
De vidas desprovidas de sopro animador.
Perdi-me em mil cabeçadas, em milhares
De lâmpadas, janelas, caras,
Em quibes frios e enjoativos
Para estômagos ulcerados.
Perdi-me nalgum sexo doente, nalgum regato poluído,
No quilômetro da saída anunciada,
Mas lá só havia mais estrada, mais cidade.

Corri nu por vielas irreais,
Desfraldei bandeiras, organizei comícios,
Berrei no megafone, deitei na avenida
Pela qual hoje passo mudo e depurado
Por faixas, sinais, apitos e a moda.
Quis atear fogo ao próprio corpo
Para que minha miséria fosse uma tocha
Na noite espectral desta cidade
Feita de alarido e escuridão.
Já quis muitas coisas, inclusive
Que todos quisessem tanto quanto eu,
Já até, ateu, clamei a Deus, no escuro,
Sob pancadas e coturnos...
Mas só obtive a traição
De quem nunca requereu minha fidelidade,
O tumulto de uma multidão incompreensível
Atropelando-me num tropel
De concreto, asfalto, avenida, indústria e comércio.
Tornaram-me um canalha sem sonhos
Ou eu me tornei um
E agora circulo por aí, desgarrado
Nos refugos urbanos,
Ostentando na estampa da camisa
O rosto de Che
Ao lado da menina que traz no peito
Um I love New York
Ou outra que vai pela pista
De camisa vermelha com a foice e o martelo
Sobre o seio esquerdo sem ser incomodada
Na cidade capitalista!

Alguém pode me dizer
Em que lâmpada dei minha última cabeçada,
Quando deixei de dar murro em ponto de faca,
Quando passei a seviciar meninos
E a me entregar a atos masturbatórios
Com meninas de dez anos?
Aquele pulha tinha razão quando disse
Que a Babilônia é o fim e o recreio de toda a vida
E que nunca fomos trombetas ou colunas de fogo
A anunciar e proteger a Éden socialista.
Agora temos apenas esta Babel sobre nossas cabeças!

Perdi-me...
Hoje, estou em silêncio
No formigueiro de concreto e asfalto,
Arranhando a languidez do azul,
Consumido por aranha sempre a tecer, infatigável,
Dominando tudo, todos com sua sombra
E ética confusas, impondo sua urdidura cruel,
Sempre disposta a ganhar mais dinheiro,
A excluir mais viventes,
A inocular outros corações...
Dia a dia, sua rede cresce,
Ramifica-se em todas as direções,
Unindo cada ser e lar,
Cada coração e alma,
Tornando irmã toda a vida
De teia que urdiu.

Já desafiei ruas e avenidas contra o conformismo,
Esquinas e arranha-céus,
Imprecando contra carros e semáforos.
Hoje, retorno de ônibus para casa,
Fraterno a todos, em conformidade,
Compreendendo inteiramente
O cansaço e a solidão de cada classe e profissão.

 
Autor
Felipe Mendonça
 
Texto
Data
Leituras
1548
Favoritos
4
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
48 pontos
14
1
4
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 19/12/2012 01:30  Atualizado: 19/12/2012 01:30
 Re: Perdido
Escreves com alma, para quem gosta de ler boa poesia. Parabéns, Felipe.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 19/12/2012 11:21  Atualizado: 19/12/2012 11:21
 Re: Perdido
Que bonito poema.
Ele contem um pouco da vida de todos nos.
Um abraco
~Mary~

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 20/12/2012 10:29  Atualizado: 20/12/2012 10:29
 Re: Perdido
Magnífico!
As duas ultimas estrofes estão, se me der licença, tão Eu!
Obrigada! Esse vou levar na mochila para ler no onibus de volta pra casa.
(Abraços)
Lápis

Enviado por Tópico
Felipe Mendonça
Publicado: 18/01/2013 19:24  Atualizado: 18/01/2013 19:24
Usuário desde: 01/12/2011
Localidade: Rio de Janeiro
Mensagens: 541
 Re: Perdido
Mary e Lápis, obrigado pela leitura. Fico satisfeito que tenham gostado. Grande abraço aos dois.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 28/04/2013 00:44  Atualizado: 28/04/2013 02:40
 Re: Perdido
Salve, grande amigo e poeta. Encontrei, em forma de recortes, retalhos, espalhados, mas sem perder os elos, todo o sentido político do texto. Traduz, com certeza, o sentimento e frustração e inconformismo da parte de uma geração, que buscava uma nova essência, um novo sentido, que vivia a utopia de sonhar com uma nova ordem. E ousou lutar por ela. Que imolou-se, oferecendo-se como sacrifício a causa, e mesclou sonhos políticos com coragem juvenil e hormônios a flor da pele, regados com copos transbordantes de cerveja, mas... viram-se, absorvidos, com o tempo, por aquilo que odiaram e desprezaram, tornando-se, involuntariamente, parte da mesma casta consumista e facilmente manipulada... seria menos dolorido morrer junto com as ideologias; o triste é acordar de um sonho e ver-se parte daquilo que mais combatemos e detestamos. Mas... na prática, todas ideologias soaram falhas, porém... ao menos eram ideologias. Triste seria se fossem simplesmente frias e vazias, como esta aranha voraz que suga sangue, almas e vidas. Seus textos são um desafio imenso. E é por isso que gosto deles. Grande abraço, amigo.


Enviado por Tópico
Felipe Mendonça
Publicado: 28/04/2013 16:36  Atualizado: 28/04/2013 16:36
Usuário desde: 01/12/2011
Localidade: Rio de Janeiro
Mensagens: 541
 Re: Perdido
Cláudio, apenas para complementar o comentário anterior, deixo aqui um link sobre o conceito de distopia que creio, de algum modo, permear o poema. Grande abraço.


link

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 28/04/2013 21:39  Atualizado: 28/04/2013 21:39
 Re: Perdido
Ok, Felipe, segui o link que você postou, e, sim, o texto é bem ilustrativo e o poema encaixa-se perfeitamente neste conceito de distopia ou antiutopia, gostei muito das referências literárias, livros em que a sociedade descrita é vigiada e controlada. Cabe perfeitamente a visão de George Orwell, em '1984', no seu poema, pois a sociedade (real) que você descreveu foi absorvida e, passivamente ou não, está presa na teia, por opção ou falta delas, ou simplesmente por não ter sobrado mão para dar murro em ponta de faca, como você citou no seu texto, vivendo como autômatos, robôs, condicionados, absorvendo uma nova cultura, global, que silenciosamente expande e estende sua rede. Mas encontrei no link, também, um outro livro, citado, que está lá, também, por enquadrar-se no conceito de distopia, mas, traz na sua fábula um dissecamento que traz a tona o verdadeiro motivo que sabota e leva a pique todas as filosofias, doutrinas e ideologias: o livro 'Admirável mundo novo', de Aldous Huxley. Vou me vigiar para não redigir posts muito longos, pois, se você quiser, vou gostar de estar conversando (aqui) sobre isso. Boa noite, poeta.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 29/04/2013 18:48  Atualizado: 29/04/2013 18:54
 Re: Perdido
Olá, poeta. Seguinte, sobre o rato de laboratório, no tempo certo, explanarei seu significado, englobando as crônicas, os poemas e o blog como um todo, visto que são, na verdade, um conjunto, interligados, possuindo significado único. No momento, vou ater-me ao sentido de distopia que norteia seu texto, porém, faço, antes, uma correção, pois cometi um erro primário: troquei o título do livro que quiz referir-me, citei "Admirável Mundo Novo", que está bem colocado no artigo, por seguir a mesma diretriz de "1984", visto que os dois abordam a distopia de uma sociedade fictícia, porém, o livro que quiz me referir é "A Revolução do Bichos", que, assim como "1984", também foi escrito por George Orwell, porém, neste último, trata-se de uma distopia no início, vive-se a utopia após uma revolução, mas, sem que hajam motivos externos para isto, descamba-se, no final, para uma grande e descarada distopia, nesta que, se não é uma fábula, pela extensão do texto, é pelo menos um triste retrato da humanidade e das ditas-cujas "civilizações". Apesar da visão pessimista do autor sobre a humanidade, infelizmente, desde que existe escrita, coisas ruins também ficam documentadas, e a história da humanidade está farta de pisadas-na-bola, que, invariavelmente, repetem-se. Existem outros fatores que também sabotam doutrinas, filosofias e ideologias. Um deles é o próprio indivíduo, porém, como a civilização por si é composta por indivíduos, aqui o bicho homem está incriminado dos pés a cabeça, pelo fato de que a simples posição ou inversão de papel na hierarquia social/política irá formular/reformular sua condição de perseguido ou perseguidor. Convém citar o Barão Lord Acton: "Todo o poder corrompe: o poder absoluto corrompe absolutamente". E cito a frase contundente, proferida num tempo recente, por um ex-perseguido e deportado pela ditadura militar, ou seja, pela direita, Caetano veloso: "Abomino toda forma de ditadura, seja ela de direita ou de esquerda". Grande abraço, poeta.


Enviado por Tópico
Felipe Mendonça
Publicado: 29/04/2013 19:43  Atualizado: 29/04/2013 19:45
Usuário desde: 01/12/2011
Localidade: Rio de Janeiro
Mensagens: 541
 Re: Perdido
Complementando minha fala anterior, seu rato de laboratório, mais do que com a distopia, parece-me, a meu ver, ser uma imagem ou metáfora que casa perfeitamente com o conceito foucaultiano de controle. Não? Até.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 30/04/2013 00:14  Atualizado: 30/04/2013 00:28
 Re: Perdido
Logo eu falarei sobre o rato de laboratório, aqui mesmo, ou, talvez, postando um prefácio, sei lá... mas (ah, sim, antes que eu esqueça... inseri uma nova resposta ao seu comentário lá no "bipolar ou multipolar", tô te esperando lá) Mas... passei aqui, por estar, ainda sob o impacto do que li, aqui, no seu poema:

"Já até, ateu, clamei a Deus, no escuro,
Sob pancadas e coturnos..."

Este trecho do seu poema nos arremessa aos porões da ditadura, onde desde o crente até o ateu mais convicto, todos rogaram que Deus existisse e os tirasse dali.

Faço um minuto de silêncio por eles.

...

Grande abraço, amigo.