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(continuação)
-Se o estivesse, doce desconhecida, desceria, por gosto, à tua fonte limpa, para beber dela… pude apreciar que tens ritmo, no que escreves. Há algo cultivado na tua arte de verter em palavras a emoção e a ideia, não é naif.
- Obrigada… vou exercitando e aprendendo a música das palavras, a força, a suavidade, a permeabilidade delas às minhas emoções…(sorrindo) Um dia, quem sabe, mereçam ser impressas e guardadas num livro…
-Publicar é uma urgência difusa, que se acumula como o pó…
-Sim… quase maculando, profanando, a arte espontânea da palavra como prolongamento de nós mesmos – concordo contigo.
-É um acumular imperceptível, mas efectivo: se não dás conta dele, acaba por representar uma carga que te pesa.
-É verdade, essa ânsia de permanecer, tantas vezes reduzida apenas a um mercado de amigos é um voo de asa quebrada. E, sem golpe de vento que os destaque, os livros serão apenas uma urgência esquecida, que servirá, por sua vez, para acumular mais pó…
-Estou a gostar desta interacção – trouxeste-me uma radiação inesperada a uma tarde de melancolia.
-Também estou a gostar. Foi bom encontrar-te, tão por acaso – gosto de conversar, mas incomodam-me certas abordagens, gosto de ti, que falas as minhas palavras… (sorrindo)
-Sorri também, deu para sentires…?
-(rindo)Tive a ligeira impressão disso, mas se mo confirmas, acredito.
-(sorrindo ainda)Também gosto de poemas curtos: emoções em síntese, pensamentos meridianamente concisos. Tens algum?
-Tenho alguns, sim. Antigamente achava que um poema de meia dúzia de versos não chegava a ser poema, não se desenrolava o suficiente para atingir o clímax. Hoje acho que um poema curto, se bem escrito, pode ser “o” clímax, o resto é excedente. Vou ver se encontro um para te mostrar, “professor” Pessoa. (sorriso)
-Ah, doce desconhecida, esse é o meu destino escrito: delenda Persona – como se a minha existência fosse o cartaginês que assombra a de outrem…
-Bom, fizeste-me lembrar, não propriamente um poema curto, só uma frase, mesmo, mas de certa maneira a talhe de foice:
"Sim, eu sei que sou só pó – mas, felizmente, Deus criou o vento!"
-(rindo,rindo muito)
-Hum, amuei…~
-Acho a ideia divertida, só pode ser apreciada por quem tenha sentido de humor!... (rindo ainda)
-Oh… tem assim tanta graça, sem nenhuma profundidade…? (riso)
-Ela é divertida, porque tem muitos sentidos, é cheia de ambiguidade inesperada. A interpretação mais séria, refere-se ao teu desejo de seres espalhada universalmente.
-Sim, claro, também a quis com graça. Mas é, sobretudo, intencionalmente profunda: no meu pó eu posso viajar sementes (como disseste), o meu pó pode pousar em todos os lugares, se eu aproveitar o vento… Engraçada, é mais esta, que escrevi na mesma linha:~
"Lembra-te, mulher, que o homem é pó e ao pó retornará… por isso, querida, não adianta limpar!"
-(rindo muito) …mas é impossível não imaginar um deus carrancudo a mandar uma assopradela, para manter o local limpo!
-Já rimos juntos…
-Acho que deverias ler o sermão do padre António Vieira na Quarta-feira de cinzas – fabuloso.
-Vou anotar. Sou muito autodidacta, deveria mesmo ler mais e já vi que posso e devo confiar nas tuas sugestões.
-Eis o meu “anãozinho”, a propósito:
Não estou,
Sou,
E neste Ser
Fico só
O que me dou.
-Muito bom, Um gota só, mas suficiente para nos agitar por dentro. É a minha vez, não é?...
-Sim, tenho a certeza… (sorrindo)
-Então, este:
Fui
e não foi por acaso
que o ocaso chegou a correr.
Fui o que fui sem atraso,
Que o caso é correr ou morrer...
-Mais uma confirmação da tensão, dentro de ti…
-Acho que me continuas a ler muito bem. “Tensão”… hum, é quase uma abordagem "light"…
-Sim, tensão, frenesim, ansiedade de acção, impaciência…
-Terás, então, que ler outros, para me veres a dor, a revolta, a asfixia, o medo, mesmo.
-Terei, sim. Sinto em ti uma ânsia de te comunicares, de sentires que há um encadeamento, uma corrente que te prende á âncora…Por isso, doce desconhecida, peço-te que não te percas de mim. És interessante. E este tempo foi demasiado escasso.
-Encontrar-nos-emos por aí, quem sabe, outra vez… Esta não é muito a minha praia, mas achei-te, valeu a pena o meu “desvio” de hoje.
-Estarei sempre aqui, à tua espera…
-Posso, pelo menos, saber o teu nome, ou vou ter que imaginar-te Fernando Pessoa renomeado Ladislau Volkv?... (risos)
-Tenho de ir. Beijo do teu... poeta.