As pessoas chegavam e sentavam-se ao redor da velha e robusta mesa de madeira escura coberta por uma toalha muito puída, livros religiosos e muitas folhas de papel em branco , lápis apontados, um tinteiro , duas penas . Mr. Duesler contou os presentes , fechou a porta , lacrou – a com cera , depois de olhar fixamente para Margaret e receber o discreto assentimento daquela cabeça jovem e tumultuada .
Pensou por trás do antiquado cavalheirismo, que aquilo tudo , poderia ser uma farsa grotesca , ás custas de um trabalho insano, mas com excelentes dividendos para a fé . Por Deus, uma vez em ação, aquela frágil criatura suava por todos os poros , rangia a bela dentadura ; num esgar demoníaco e assustador,cruzava os braços, estalando os ossos , franzia o cenho á maneira dos endemoniados ,órbitas brancas por olhos revirados , tal as estátuas da antiguidade .
Nesta noite, acompanhava Mr. Duesler ,um homem alto, magro , jovem ,de feições finas, queixo resoluto , modos muito reservados, num olhar seguro e inquieto , musculoso apesar de magro – indicava-o o relevo de suas coxas ,sob a calça de tweed , enquanto sentava ,pensativo com o seu chá,em singular e cabisbaixa vaidade. Contemplava a mão direita, ostentando um pequeno anel de pedra vermelha e saliente, no dedo médio , distraidamente girado pelo polegar ; uma boca de lábios finos,um ruivo cavanhaque envelhecia- o uns bons dez anos ,emoldurando um sorriso tímido .
Observava agora Katie e Margaret, em erudita e curiosa atenção, digamos assim , de quem estuda uma dupla de raros espécimes de borboleta , bem fixados por alfinetes e sob uma potente lupa . Tudo sob o controle da gaia ciência , pensaria aquele jovem cético,tão britânico em sua frieza, devolvendo a xícara vazia ao aparador próximo de sua cadeira.
Levantou-se ao aceno de Mr. Duesler.
- Irmãos, apresento–vos o Dr. William Crookes, da Sociedade de Investigações Psíquicas de Londres ,estudioso dos fenômenos metafísicos ,convidado para observar in loco o trabalho das irmãs Fox , anunciou a voz empostada de um vaidoso Mr. Duesler.Apresentou – o primeiramente a Katie , entre sorrisos tímidos , até constrangidos , de parte á parte .
Margaret mantinha-se calada ; como de costume , abandonaria o mutismo , após a acomodação de todos , ao redor da velha mesa de carvalho , com uma vela posta no pesado castiçal, que logo seria acesa , com o desligar da iluminação á gás ,no início dos trabalhos. Katie observava aquele moço velho ,sentindo-se assustada , imaginando a distancia percorrida pelo cientista; mais um daqueles movidos pela fama das irmãs , que faziam girar mesas pesadas e grandes, com auxílio dos espíritos, ajudando a descobrir e prender o autor de um assassinato que abalara a pequena e sonolenta Hydesville , alguns anos atrás .Imaginava quanta coisa teria visto um homem com tanta ciência e liberdade de ir e vir onde quisesse, falar com quem quisesse, talvez flertar com algumas garotas mais desinibidas, enquanto ela e a irmã, tornavam – se um tipo de atração circense naquele fim de mundo, conquistando uma notoriedade que não as impedia de seguir acordando pela madrugada ,ordenhando as vacas , tirando água do poço e ainda cuidando da casa e do pai severo, viúvo desde os trinta anos, pela tuberculose que lhe tomara a esposa .
Hydesville , apenas uma parada no meio do nada, vizinha de New York apenas três centímetros medidos no papel do mapa ; na prática, um mero intervalo empoeirado entre o nada e coisa nenhuma , em 1847 . Margaret fitava os sapatos londrinos do Dr. Crookes : novos , mas arranhados ,sujos , brigando com o restante de uma aparência meio dândi para um cientista , retratado pelos jornais, como uma espécie de caçador de fantasmas, preciso e implacável com os fraudadores que desmistificara ; áquela altura, uma legião .
Sentados todos á mesa ,as irmãs, Mrs. Redfeld vizinha e propagandista de primeira hora daqueles prodígios ,Mr. Duesler , pastor e juiz de paz, sério e ascético tal um monge em seu trajar pietista , Dr. Crookes e Stephen Smith , pai das moças e dono da casa , uma face onde a desconfiança e a mais autentica perplexidade alternavam-se em tragicômica seqüência .Apagado o bico de gás , a sala ficou um instante ás escuras, até a luz da vela encorpar e ganhar força , espantando a treva .
Seguiu- se a recitação das orações de costume , por Mr. Duesler ; ao final ,um silêncio opressivo dominou o ambiente; quebrou - o a voz de Margaret , solicitando dos presentes silencio e pensamentos voltados para Deus,com um olhar de soslaio e antipatia para Crookes , lembrando do ceticismo que polvilhara pó de arroz ao redor de todas as cadeiras e solicitara o lacre com a sua própria cera , da porta da sala – suas condições para publicar um artigo sobre os fenômenos , na prestigiosa revista da Sociedade de Investigações Psíquicas de Londres ; tirando do território do burlesco e da desconfiança ,os acontecimentos de Hydesville ; convencendo o mundo da natureza espiritual e divina que regia tudo aquilo : uma tese defendida há meses , por Mr. Duesler , de dedo em riste e face em congesta convicção , durante o culto dominical . Margaret solicitou que todos se dessem as mãos , para concentrar a energia do ambiente ; seu rosto contraiu-se num espasmo medonho enquanto um frêmito percorria a mesa em toda sua circunferência , surpreendendo os presentes, que sentiam o móvel sendo empurrado contra os seus braços , elevando – se do piso .Um forte cheiro de ozônio saturou rapidamente a sala . Mr. Crookes sentia todos os seus nervos tensos , a serviço dos sentidos .Conseguia manter a calma , olhando ao redor , mas a semi-escuridão parecia espessar-se a cada olhar seu .A pesada mesa,agora oscilava .Após alguns minutos , retornou lentamente ao solo , o cheiro de ozônio começou a ficar mais rarefeito .
A cabeça de Katie começou a liberar pelos ouvidos e pela boca , uma substancia vaporosa e luminosa , que parecia expandir-se na progressão do transe silencioso e trêmulo.Á luz mortiça da vela , a substância começou a condensar-se em duas formas humanas , um homem e uma mulher , rostos indefinidos, abraçados e nus , em meio a um magnífico e luminoso jardim .A mulher ofereceu uma maçã ao homem fosforescente , que recebeu a fruta , enquanto uma serpente saía do seu flanco esquerdo, picando-a furtivamente no pescoço; os rostos indefinidos eram agora os de Katie e de Crookes , em réplicas perfeitas .
Exclamações de terror e surpresa tiveram início , as pessoas ora rezavam aos gritos , ora gemiam de puro medo,voltadas para uma Katie agora imóvel e de feições serenas . Crookes , que reconhecera a cena de um antigo livro religioso , estupefato , pulou da cadeira e acendeu o bico de gás ; a substância refluiu imediatamente para o corpo da médium . O cientista aproximou – se de Katie , a tempo de constatar a sua morte e verificar-lhe o pescoço , perfurado por dois orifícios diminutos e paralelos , talvez o preço por conhecer o Paraíso.
andrealbuquerque