Também deste poema se morre
letra após letra
o som inteiro e intenso da palavra
que cria rios e desertos e miragens
grises como o meio da noite
onde o poema descreve arabescos
e o agora dissolve os segundos
na farsa do tempo que é morte
Também destas horas se fartam
o incandescente amargor coleante
da areia escorrendo amarela
como um rio ruminante
entre o passado soturno
e o futuro incognoscível
que nos mantêm de joelhos
há 512 anos
Também nas madrugadas se chora
o choro longo ou breve
como chora o rio fora do seu leito
um choro que se pensa infindo
que se chora até se adormecer
no engano
e na absorta cachaça do sono
onde dormem os olhos incompreendidos
da infância
que nem você conseguiu consolar
trazendo a flor ébria e a cinza neblina
que se esvaneceu deixando
a primeira palavra do poema
sem resposta
Também se vive a contemplar o mundo
constrangido
náufrago
anacoreta
a estacar diante das reticências da vida
a mergulhar no espesso lamento da dor
das guerras profetizadas nos gabinetes
incesto e morte
e o desespero natimorto da platéia
diante da face do medo
diante do cansaço da espera exilada
e da ausência de perguntas
enredadas na vontade empoeirada
de quem, sequer, vê o muro
Também de fome se vive
de sonâmbulas bocas esquecidas
esperando o pão nosso de cada dia
ardendo em febres
e esperanças forretas
Pai,
perdoai a nossa inércia
assim como nós perdoamos
a quem nos tem debicado
não deixeis cair o parco pão
no chão conspurcado
pela nossa apatia
e pela nossa "candura"
livrai-nos dos néscios
e da submissão
Amém