(continuação)
Entrámos no primeiro bar que nos apareceu, na rua seguinte. Estava à pinha, cheirava a fumo de cigarro e a essências maceradas em vapores de álcool. Ainda tentámos abrir caminho até um canto mais calmo, mas foi tarefa inglória, quase nos perdemos um do outro. Num momento qualquer, alguém nos empurrou um contra o outro, e ficámos assim, sozinhos um instante, cada um dentro dos olhos do outro. Acho que foi ali que o que quer que fosse que tivesse incendiado em mim, se fez lume vivo. Mas não tive muito tempo para pensar nisso, ele já me puxava para fora, com a minha mão fortemente presa na sua.
- Marília… - tens um nome que tem gosto, sabes?, sabor: mel, sal, ervas de aroma… alecrim e alfazema.
Eu ri com gosto e agradeci-lhe intimamente por isso, porque me reorientou as atenções de perdição.
- Já me tinha esquecido que o Professor também é poeta…
(além de político, figura de renome, alguém muito acima das minhas “inspirações”, pensei, estremecendo).
- Não… contigo sou só Herculano – disse ele, com um sorriso que pretendia humildade e que acusava a deferência do tratamento.
Abriu o sobretudo e embrulhou-me com ele, numa intimidade que agradeci e temi, ao mesmo tempo.
Na próxima esquina havia um barzinho pequeno, de onde se escapava Kenny G, reproduzido num qualquer saxofone amador. Entrámos. Estava quase vazio e os acordes de “The moment” receberam-nos de um modo intimista e apaziguante. Escolhemos (ou melhor, o “meu” professor escolheu) uma mesa ao fundo, onde a luz chegava só o suficiente para nos vermos de perto.
- Que queres tomar? – perguntou-me, quando o empregado se acercou.
-Um licor Beirão. Sem gelo. –disse eu, e de repente rimos ambos, evocando campos de alecrim com mel, alfazemas à beira mar – coisa pouco provável, mas em poesia vale tudo, e, naquele momento, rimámos os dois.
- Boa escolha – disse ele, olhando-me intensamente, com o sorriso a prometer-me um beijo. – O mesmo para mim – disse ao garçon, depois de retomar o auto-domínio da boca.
Fez-me levantar o olhar para os seus olhos onde eu temia cair, com um toque do seu indicador direito no meu queixo:
- O que te move, Marília…?
(continua)