Tinha conseguido aquele convite para o Grande Sarau de Poesia, graças ao envio para a organização, de um livrinho que eu tinha editado o ano passado e que tinha ficado preso no círculo de amigos & benfeitores… e no prejuízo. Não tinha nada a perder, pelo contrário: era esse o propósito do evento, o de valorizar e/ou descobrir novos talentos da Literatura e da Poesia.
Escolhi o meu melhor vestido, respirei fundo, e, como a inspiração profunda não provocou o milagre de me acetinar as faces e dar-lhes uma corzinha… lá deitei mão ao estojo de maquilhagem e fiz, eu própria, o pequeno milagre de me deixar mais apresentável. Mesmo assim, não sei se consegui disfarçar as rugas dentro dos olhos e uma certa mancha sombria por trás do sorriso…
Entrei de livro na mão - franzino, como eu – e fui direcionada para a mesa dos autores, por alguém que me olhou de alto a baixo como se me visse mesmo lá em baixo e a ousar muito, ao por-me em bicos de pés.
O sarau decorreu como deveria, pontuado de momentos admirativos de genuíno interesse e silêncio e de burburinhos de desatenção e desinteresse; de palmas de cortesia, de recitações empolgadas, de abraços genuínos entre gente que nunca se viu além de letras virtuais, de sorrisos hipócritas e palmadinhas nas costas imitando incentivo, que mais pareciam querer espantar melgas, enfim, o costume... Mas os sorrisos, esses, eram todos do melhor dentífrico do mercado, até porque estavam lá os melhores flashes da imprensa cor de rosa e a preto e branco.
Do meu livrinho, foram lidos dois poemas. A selecção tinha sido feita previamente por duas figuras públicas, entre a nata dos ilustres do eixo politico-cultural do país. Pareceram agradar (os meus poemas, claro, que as ilustres figuras nem sempre agradam a gregos e a troianos…). Mas eu até fiquei encantada com uma delas – ou ela comigo, sei lá bem. Simpático e afável, deixou-se ficar na minha conversa, entre um porto, uma piada inteligente e uma pergunta de circunstância sobre a minha escrita, talvez para justificar o propósito da atenção. Ainda achei ver-lhe nos olhos um brilhozinho de indefinido e genuíno interesse, mas isso devia ser já efeito do porto, sei lá.
Saímos todos ao ritmo incerto dos pares de beijos, dançando nos sorrisos já a descair de cansaço. O meu ilustre interlocutor, que entretanto já tinha ido dar o seu contributo de conversa a outros, veio despedir-se de mim com um quase abraço que cheirava a colónia cara e, dessa vez, vi-lhe mesmo um brilhozinho nos olhos – seria do porto?...
Saí. Ainda o vi entrar num luxuoso Mercedes, devidamente apetrechado com todos os extras, incluindo um motorista fardado de soldadinho de chumbo. Suspirei. Podia ser que ele lesse o meu livro e falasse dele no programa cultural que apresentava todas as semanas, no canal mais visto do país… podia…
Estava a entrar no meu pequeno carro de outras guerras, quando senti algo tocar-me o ombro. Uma mão forte, um toque de urgência. Virei-me e… ali estava ele, a minha figura (já menos pública), embrulhado no sobretudo cinzento e a cheirar discretamente a colónia cara. E aquele brilhozinho nos olhos.
- Não podia perdê-la assim… não esta noite. Gostei muito da nossa conversa e acho que quero saber mais. Que diz a um passeio pelas ruas, uma paragem num barzinho, talvez… ?
Deixou a pergunta no ar como um menino que ensaia um primeiro voo do seu papagaio de papel. Estava frio, e eu só trouxera em cima do vestido leve uma pequena capa de imitação de pêlo. Ele pareceu ver o meu ligeiro arrepio e apressou-se a rodear-me com os seus braços fortes, sem esperar a minha resposta e começámos a caminhar na noite, para longe dos restos espalhados da festa.
- Não sei para onde vamos… - disse eu, sabendo que ele percebia o sentido que eu queria dar ao “para onde”. – o senhor é muito grande para as pequenas ruas da cidade, ainda mais para as minhas estreitas vias de… relacionamentos. – Culturais – acrescentei com um sorriso quase escondido no sobretudo dele.
- Podem ser limitados, os teus horizontes, vistos da tua perspectiva… - o tratamento por “tu” provocou-me uma vertigem, não sei porquê. – mas tens caminho, tens mãos para o desbravar, tens material para te elevares.
- Leu o meu livro…? – perguntei, quase o fazendo parar, entre o espanto e a esperança.
- Não. Li-te.
Aí parei mesmo, e ele comigo, enfrentado-me. Aquele brilho estava mesmo lá, nos olhos semicerrados dele – ainda suspeitei que fosse do frio, mas ele reforçou-o e disse:
-És uma mulher fantástica, inteligente, sensível, interessada, interessante. Gostei imenso de te conhecer esta noite, acho que a nossa conversa foi a melhor e mais genuína que tive, nos últimos tempos. E talentosa, também.
Depois disto, a minha pouca loquacidade, desligou-se completamente. Baixei os olhos e até o escurinho indiscreto da noite gozou com a cor carmim do meu blush…
- Mas vou ler o teu livro, podes ter a certeza. – acrescentou ele, apanhando-me do chão do meu embaraço e arrastando-me com ele, agora ainda mais decidido.
- Obrigada, - disse eu, vários passos depois. Pelo menos pela parte, digamos… não tão literária do elogio… - dei uma risadinha nervosa e acrescentei, quase mais para mim mesma que para ele: - acho que nunca ninguém julgou tanto de mim…
Ele pareceu perceber a mágoa que me escapou por baixo das palavras e parou outra vez, mas só para me olhar em silêncio, naquele tipo de silêncio que nos analise os cantos mais fundos da alma. De repente, sem eu o esperar (ou tavez sim…), deu-me um beijo na testa, ainda feito do mesmo silêncio. Depois perguntou, como se acordando ao contacto de gelo da noite:
-Tens frio?...
Claro que tinha. Ou não tinha, se calhar só estava a tremer por outra razão. Mas como a razão tem mistérios que nem a nossa mente reconhece, disse que sim, com a cabeça – nesse momento, um golpe de vento entrou-me para os olhos, que lacrimejaram – sempre fui sensível ao frio, frio, para mim, é dor.
(continua)