NOTAS HISTÓRICAS-A RAIVA NA ILHA DA MADEIRA
Corria o ano de 1892. Na ilha da Madeira surgira uma doença estranha que vitimara vários cães e algumas pessoas.
Suspeitava-se que fosse raiva mas as opiniões dos clínicos locais estavam divididas.Tinham decorrido apenas 10 anos desde que Louis Pasteur havia apresentado juntamente com seus colaboradores Chamberland, Roux e Thuiller a sua importante comunicação sobre a raiva na Academia de Medicina (Dezembro de 1892)
Cronologicamente essa seria de facto a terceira memória sobre trabalhos que haviam sido iniciados em 1880 pela mesma equipa, a qual iria ser pouco depois reduzida a uma unidade com a morte prematura de Thuiller em Alexandria, para onde fora estudar uma epidemia de cólera em 1883. Nesses primeiros trabalhos e nos que se lhe seguiram Pasteur e seus colaboradores apresentam conclusões curiosíssimas muitas das quais permanecem actuais: vias de transmissão do vírus; presença precoce do vírus na espinal medula; presença do vírus nos nervos (pneumogástrico e ciático) e nas glândulas salivares (maxilares, parótidas e sublinguais)variações de virulência; o cão como reservatório do vírus e principal responsável pela raiva humana; os vírus das ruas e os vírus fixos. Pasteur preocupava-se por não poder observar o vírus da raiva ao microscópio e considerava esse facto como uma importante lacuna nos seus trabalhos.
Tão pouco conseguia cultivar o micróbio da raiva, e, no entanto, ele estava presente na saliva ou no sistema nervoso dos animais raivosos. Seria necessário que se passassem mais 60 anos para que o vírus da raiva fosse finalmente observado e descrito morfologicamente como semelhante a uma bala por Sokolov e Vanag em 1962.
O diagnóstico da raiva não era fácil e surgiam frequentemente conclusões contraditórias principalmente nos casos que não se apresentassem (a maioria) como típicos.
A introdução do coelho como animal de experiência em substituição do cão, por Pierre Victor Galtier, fora uma contribuição importantíssima para os estudos sobre a raiva e seu diagnóstico. Recorde-se a propósito, ter sido apenas em 27 de Março de 1903 que Adelchi Negri descreveu nas células nervosas os corpúsculos que têm o seu nome, e que passaram a ser considerados, após longas discussões como característicos da raiva.
Em 1883 António Maria Mendes afirmava que a solução do problema da raiva seria a vacinação escrevendo que o diagnóstico da doença era a observação continuada dos cães suspeitos de raiva.
Mesmo assim o diagnóstico não era fácil e surgiam frequentemente erros clínicos.
Nesse fim de século a raiva era endémica no nosso país.
Em Lisboa já era obrigatório o registo dos cães e os proprietários dos suspeitos eram obrigados a interná-los no Instituto Geral da Agricultura para observação e diagnóstico. Mantinha-se em vigor o decreto do intendente Pina Manique, publicado em 1778, que impunha o abate, na cidade de Lisboa, de todos os cães errantes que não usassem coleira e açaimo. Em 1896 segundo os médicos Miguel Bombarda e Luís da Câmara Pestana "a raiva floresce com tal intensidade no nosso país que dificilmente se poderá encontrar outro, não só que o iguale, mas mesmo que d'ele se aproxime". O tratamento anti-rábico das pessoas agredidas por animais suspeitos ou doentes de raiva fora iniciado em 1893 em Lisboa.
Quando os trabalhos de Pasteur foram conhecidos no nosso país, os colegas de então, aderiram, rapidamente às suas conclusões.
Talvez porque o problema do carbúnculo hemático se apresentasse entre nós com características alarmantes, os colegas de então viram imediata-mente que a sua solução estaria na vacinações de Pasteur.
Pasteur realizou a sua clássica experiência de vacinação anti-carbúnculo em 1891,e em Portugal em 1 de junho de 1892 o curriculo escolar do Instituto Geral de Agricultura foi acrescentado com a disciplina de "Epizootias, Polícia Sanitária,Direito Veterinário e Medecina Legal
Veterinária". Foi seu regente o professor Joaquim Inácio Ribeiro. A sua tese de concurso intitulou-se "O parasitismo nas afecções contagiosas". Assim se iniciou a Bacteriologia em Portugal e Inácio Ribeiro foi o seu pioneiro. Foi criado então, numa pequena dependência do Laboratório de Química, um gabinete de Bacteriologia, onde além do referido mestre, trabalhavam ainda os professores Antunes Pinto e Paula Nogueira. Tudo se passou, portanto, bastante antes da fundação no Hospital de S. José de um pequeno laboratório onde o madeirense Luís da Câmara Pestana realizou, juntamente com Aníbal Bettencourt os primeiros trabalhos de Bacteriologia Médica. Câmara Pestana fora enviado ao Instituto Pasteur para que se aperfeiçoasse em bacteriologia e a criação do Laboratório que viria a ter o seu nome teve lugar em 1892. Nele se iniciaram as vacinações anti-rábicas a partir do ano seguinte. Recorde-se que Câmara Pestana foi um ilustre bacteriologista e investigador. Infectado acidentalmente quando estudava a peste bubónica
na cidade do Porto, em 1898 foi vitimado pela doença. Em sua homenagem o Real Instituto de
Bacteriologia, de que era director, passou a ter o seu nome.
O referido gabinete de bacteriologia existente junto ao laboratório de química do Instituto Geral
de agricultura veio dar lugar ao primeiro laboratório de bacteriologia criado em 2 de Dezembro de 1886 para o ensino.
Em 1890 o Dr. Roque da Silveira foi nomeado director do Laboratório de Bacteriologia ao regressou de Paris onde fora estudar no Instituto Pasteur iniciando a preparação da vacina anti-carbunculosa.
O Instituto Geral da Agricultura era um estabelecimento de ensino integrado no Ministério das Obras Públicas, Comércio e Industria, dependia da direcção geral da agricultura e sofria com as variações humorais do Director Geral dos Serviços Agrícolas, com os consequentes atropelos e prejuízos. Uma discordância entre esse director geral e o conselho escolar do instituto fez com que em 1891 o Laboratório de Bacteriologia e o Hospital Veterinário fossem desanexados para ficarem afectos à Direcção Geral da Agricultura.
Para esclarecer a suspeita da raiva que surgira ma Madeira foi então nomeado o director do laboratório de bacteriologia Dr. Roque da Silveira o qual desembarcou no Funchal em 8 de Outubro de 1892. Para além do fim expresso do despacho de nomeação, deveria também dar parecer sobre a conveniência de estabelecer nessa cidade um instituto anti-rábico.
Roque da Silveira encontrou uma situação complicada; tanto a população como a classe médica
encontravam-se divididas. Roque da Silveira em colaboração com o veterinário do distrito do Funchal(o Dr João Tierno) procedeu a colheitas do bulbo raquidiano de pessoas e animais dados como suspeitos tendo morrido de raiva ou simplesmente suspeitos. A sintomatologia que se observava não era de molde a convencer os clínicos.Encontrou alguns casos de raiva muda ou paralítica e de raiva agressiva em cães.
Em Santana em 21 de Outubro de 1892 observou um caso de raiva num bode que descreveu do modo
seguinte:"O animal pastava preso a uma corda, num pequeno campo, onde, cerca de 20 dias antes tinham
sido mortos dois cães julgados enraivados. Notou o dono do animal que este ao recolher, no dia 19
não estava tão farto como de costume,apresentando-se ao mesmo tempo triste; no dia 20 aumentou essa tristeza e comeu pouco; no dia 21 em que eu o vi, manifestava ele os seguintes sintomas: grande
tristeza e perda completa do apetite, baba abundante, pulso frequente e pequeno, respiração
pequena, frequente e difícil, temperatura elevada, constipação do ventre, anuria, olhar fixo e espantado,boca entreaberta, paralisia dos músculos da garganta, dificuldade nos movimentos, irritabilidade, investindo com os animais sobretudo com o cão. No dia 22 exagera-se a maior
parte destes sintomas e apareceu a parésia do terço posterior.No dia 23 sobreveio a paralisia geral morrendo na manhã de 24."
continua...