Num reflexo de alguém que eu temo ser e também um tanto reconhecer, vejo-me num destroçar de sonhos.
Sinto-me a flutuar, como se num sonho sem sentido e interminável.
Tenho vindo a navegar numa névola constante e prepotente que se coloca perante os meus olhos, esses que discutem com um argumento inválido de não terem mais motivos para viver, de se quererem fechar.
A minha vontade de acordar recolheu-se ao som do disparo de luz solar, do aviso do dia que tinha chegado.
Sento-me sobre a cama por desfazer e fria e reflito sobre os últimos mil dias que tenho passado aqui. E então, avanço por entre o resto do túnel afunilado que me guia como um carrinho de mão ao passado, desde que a memória me deixa lembrar.
E nada. Leio apenas histórias platónicas de um mundo que não existe, de uma pessoa que eu inventei, de uma personalidade, identidade de quem não pertence a este corpo.
Penso quem foi que me amou, quem é que me lamenta a existência e se debate durantes noites escuras sobre se eu deveria ou não cá estar, penso em que me aborda nos sonhos, em quem me disse que eu poderia vir a ser alguém, eventualmente.
Penso em que me puxa para baixo, para não me deixar elevar e desaparecer entre a névola, onde eu perco a noção dos caminhos de volta e me mergulho na dormência para não me sentir o corpo agarrado à alma.
E então, volto a ler. Volto a ler palavras de nada. Desaprendi de ler, perdi a minha habilidade de falar, de me expressar. De pintar o rosto do abstrato, de escrever palavras sem significado, misturadas ao caso, dando a ilusão de serem e quererem ser algo, quando, no fundo, nunca serão nada.
Sinto que tenho dito muito ultimamente, mas que ainda há um vago de palavras em vias de serem usadas, como um recurso para algum momento que não parece chegar nunca.
Digo nada, e esse nada mergulha-se na profunda essência das aparências sem fim, no abstrato de um quadro com traços feitos por um braço sem dono, lançados casualmente à tela.
Tenho-me vindo a cansar do som da minha própria voz, da sua irregularidade, dos movimentos dos meus gestos, das feições mal desenhadas do meu rosto.
Já nem compor frases sei, parece-me.
Entre uma boca que deveria estar calada e uma mente que não deveria estar assim ocupada, afogo-me na minha mesma existência de ser nada.
Morro. E entre aquilo que é morrer, apercebo-me que mal soube viver.
Não tenho ninguém a quem me agarre, ou alguém que me faça querer ficar. Eu fui a tanto sítio, nesta cadeira.
Oh, esta mente...
O que me prende aqui?
Todas as memórias que terei no fim serão do que nunca passou de um borrão no ar, de um sonho que quase se sentiu tocar, que se jurou viver.
Afasto as pessoas, e se a minha mente se pudesse separar do meu corpo, já o teria abandonado debaixo de um poste de rua apagado, junto a um caixote de lixo com cheiro a urina.
Vagueio e não assento, entre ali e aqui, entre o que quero, mas o que não pode existir; como a poeira (suja e modesta de sentido de viver, que se move, embora seja inanimada).
Pergunto-me assim se serei sempre isto. E despedaço-me perante esta ideia plena de ser nada, de continuar a ser nada!
Oh, eu serei nada...
Puramente nada, vagamente nada.
Perco-me de quem quero ser e entre aquilo que penso que sou. Plena insignificância.
E ficou um "eu" aqui sentada, lavada nos cacos das suas desiluções.
Sou horrível. Oh, o quanto desse adjectivo me deve preencher as banhas da loucura. O que serei eu, afinal? Um tormento à própria alma, diria.
Mas o que sei?
Só de pensar que foi isto que cresci para ser manda-me para um canto da escuridão já tão confidente, íntima.
Não sei quem sou. Sei nada...tenho cada espaço por preencher de tudo.
Do que ficou por saber, deixa-se um puzzle inacabado.
Doente. Afinal, sou doente. E continuarei a ser doente.
E por entre os bocados de todo o meu autismo, penso que estou vivendo para morrer.
E envelheço, para este fim.
Para morrer, talvez sentada numa velha cadeira de madeira baloiçante, que me mandará para a frente e depois para trás, como me mandou a saudade e o esquecimento; o tempo. E eu, já com os olhos pequeninos e com os lábios finos, gastos de tanto falar ( de tanto tentar chamar o que não é chamável), já quase inexistentes, estarei perante uma caixa de cartas vazia, com um cheiro a sujo.
Cartas, umas que escrevi e para as quais não encontrei destinatário (isto nas vezes em que soube discriminar o remetente), que sempre esperei, mas nunca chegaram.
Enfim, vivo para morrer em frente a um baú vazio de memórias, de uma vida mandada ao desperdício por uma alma demente.
Que pura e isolada demência de alma! .... E eu preciso de ti agora.
Oh inocência, o quanto eu preciso de ti...
Lau'Ra