O dia enfim,chegara . Quase igual a todos os outros,tinha uma manhã,teria uma tarde e sem dúvida,uma noite.Apenas uma diferença:eu mesmo.Mal consegui dormir,pensando que na manhã seguinte,seria a primeira comunhão,depois de tantos domingos ensolarados e tediosos,cheirando a alfazema borrifada sobre a camisa e a calça curta de algodão , na marcha cabisbaixa para a igreja matriz , renunciando sem votos á pelada e ao Lone Ranger, na TV . Afinal, completara nove anos.
A roupa azul-marinho, já uniforme de catecismo ,um pouco de Trim no cabelo rebelde e muita ansiedade no coração, completavam –me os domingos, escutando as prédicas de dona Iná, na voz rouca , profunda e estertorosa de asmático,empunhando o catecismo de Monsenhor Negromonte e ás vezes outro, colorido , de páginas lisas e opacas pelo manuseio fanático,lido em cadencia e fervor tão poderosos,que me sentia chamuscado pelo fogo do inferno e zonzo de pavor da sibilante espada do arcanjo vigilante lá do altar, que me pretendia a cabeça ,habitando-me os pesadelos de pequeno pecador. Lentamente, sentei na cama.
Meu olhar encontrou a cadeira de palhinha do quarto, guarnecida pela roupa de linho branco,nova e engomada,cinturão preto e sapatos também pretos e novos ; num pequeno saco plástico , um missal e um par de luvas brancas de pano, espécie de arremate àquilo tudo, a indumentária com que enfrentaria a igreja e as potestades do céu e do inferno,que a qualquer momento me projetariam nas hostes do Tinhoso,num tedioso limbo ou no caudaloso Nada , pelo resto da minha vida , conforme a força e tamanho de minha fé .Céu? Nem pensar, não era coisa para os amedrontados discípulos de dona Iná. O céu... o céu era coisa muito fina para o nosso bico .
Não lembro quanto tempo fiquei sentado na cama,olhando aquelas roupas tão belas quanto estranhas em seu alvor supremo.
A qualquer momento, minha mãe entraria ,me mandaria tomar banho e vestir a roupa imaculada e concebida sem pecado,na faina insone de dona Sinhá.
Que sacrilégio!Tomar banho pela manhã, eu ? Sim,eu pecador me confessaria pela primeira vez diante do representante daquele Deusão de longas barbas, do Deus contabilista do Grande Livro Dourado ,dos pecados e boas ações, em duas grandes colunas a apontar meu destino .
Então, eu veria um raio de sol estranho e bonito , filtrado pelas nuvens , que haveria de aparecer na vidraça e pousar-me sobre as mãos, acompanhando-me até esconder-se nas retinas, durante a minha curta e cabisbaixa passagem pelas ruas,reassumindo a radiosa forma nos vitrais da velha e solene igreja, habitados por João Batista e a Sagrada Família,na estreita comunhão com vacas e burros que fugia á minha compreensão.
Um sol de domingo sem pelada e sem banho de rio, iluminaria potente e inútil, toda a nave da igreja que atravessaríamos, em mudo constrangimento, por não sermos ainda anjos ou pequenos demônios.
O pior mesmo , seria ficar em jejum enquanto durasse aquilo tudo ;as hóstias deviam encontrar limpo o estomago dos fiéis, a ser preenchido pela graça de Deus enfiada em nossa boca pelo padre Eduardo,acompanhado pelo olhar do coroinha e vizinho meu,em perpétuo ar de contrição e piedade, que se esfumaria com o apagar daquelas velas enormes e correria para o grande campo de futebol, onde jogaríamos com prazer e fúria que não poupariam sequer o nome das nossas mães, nas entradas mais desleais.Então, Caciel empunharia aquele pratinho de prata, acompanhando o padre ,como que atado á sua batina ,em brancos paramentos .Tudo aquilo antecipado e sofrido por mim.
A hóstia, um quase nada , algo que parecia sempre ameaçado de não ser mas sendo; pela fragilidade , pela cor , pela transparência estranha , pela transformação depois de mergulhada naquele cálice enorme que todos imaginavam cheio de sangue, mas Caciel dizia ser tudo bobagem,que era mesmo um vinho gostoso e meio Ki-Suco para beatos.
A hóstia, o ensaio de coisa nenhuma onde se escondia Deus, a descer-me de goela abaixo , purificando-me quer eu O desejasse ou não.
Então,chegou a minha mãe,de vestido azul – marinho , já com a fita de seda vermelha que lhe cingia o pescoço e sustinha a medalha dourada do apostolado,tão brilhante que me parecia mais sagrada que a própria igreja, o olhar doce e distraído daquela que pariu um filho no crepúsculo da mocidade,nos resquícios de uma fertilidade até então, inútil.
Nasceu-lhe aos quarenta e um anos , o produto do amor temporão e da necessidade atroz de realizar-se mulher e alegrar o homem que a engravidara ,com quem semeara aquele útero até então desabitado e ermo , na virgindade árida e bolorenta , estorvo mais que virtude.
Banho tomado,roupa vestida, o linho novo arrepiava-me a pele tal alfinetes gelados,intuição infantil do cilício com que tantas vezes supliciaria o corpo e o espírito no cerne pecaminoso e blasfemo, ferindo mais dolorosamente na alma que num corpo já habituado ao negaceio do belo ,do prazeroso e até do sublime , porque na alma as feridas não cicatrizavam,vivendo com força e vida próprias .
De pé sobre a cadeira , o menino vestido pela sua mãe,enquanto sabatinado no santo-anjo,no ato de contrição, de permeio ás ave marias e padre-nossos , que nós , os pequenos, escandiríamos timidamente, tentando depois arremessar tudo entre as enormes e vaporosas colunas de nuvens ; que os ventos soprassem todas aquelas litanias para bem longe, porque nada daquilo jamais faria parte de mim ; descobriria tarde e penosamente, na vida adulta , após tantos anos de longo e libertador sofrimento .
Seguiria o seu curso o domingo ensolarado e primaveril;duas tias solteironas iriam até lá em casa visitar-me e fazer companhia até a igreja,onde me juntaria ao grupo dos novíssimos e tímidos cristãos,avançando ao longo da nave da igreja, vislumbrando meu avô a tocar órgão lá no alto, junto ao coro e escutando aquelas vozes que cantavam um céu remoto e por demais dourado para mim , no parco e assustado entendimento.
Livre de todo o pecado e perturbação,no confessionário do sonolento padre Eduardo, retornei para casa, pela mão fria e suada de minha mãe.
Na sala de estar, vi-a explodir num rompante assustador de choro e ranger de dentes; assustador mas compreensível, até para os meus nove anos, pois sabia ser aquilo tudo,a força da ausência do meu pai , tão imperativa e atroz, primeiro motor daquele terremoto; meu pai que abandonara a casa ,na noite do meu aniversário de seis anos ,por minha tia Marlene, que dali, sobre a mesa da sala ,sorria do interior do retrato que minha mãe agora despedaçava ,em fúria santa e grotesca ; a tia Marlene de biquíni e óculos de gatinho, de coxas tesudas , bunda petulante e firme, triturando a macharia no salto agulha; no calçadão da praia de Candeias, na epifania de um domingo ensolarado,enlaçando-me em carinhoso abraço , musa constante das minhas primeiras punhetas pouco tempo depois; quando traição era apenas uma palavra a ser dita com raiva e olhos vermelhos de dor , por pessoas muito infelizes ; benfeitora na minha aflição sexual , que tantas vezes aliviou no meu quarto ,nua, entre meus lençóis, fazendo-me tocar seu corpo moreno e cheiroso, sentir-lhe a penugem e a vulva entreaberta por mãos curiosas e ávidas no tesão temperado de amor e medo , da iniciação na ternura apreensiva ; de tornar-me homem , mesmo que pela metade , entre emoções confusas e avulsas , o sexo incandescente entre as pernas, túrgido de sexualidade ainda vã e atormentada , sua voz ao meu ouvido , um sussurro de ternura ; mamilos ingurgitados no prazer de estar ali, com o sobrinho amado e já atormentado por uma vida que me mostraria um rosto crispado e punhos fechados, infelizmente reais pelos anos afora .
Meu pai, vivo e morto ao mesmo tempo ; onipresente graças ao silencio de tudo e de todos ; meu pai, o ignoto, que durante tantos anos confundi com o próprio Deus e quando o descobri fraco e medroso como eu, já era fraco demais para admiti- lo fraco e medroso como eu. Apenas tarde demais; só isso.Amém.
andrealbuquerque