Ó Pai,
Governante angelical deste mundo,
Habitante das esferas mais sensíveis do desejo
Conhecedor íntimo dos círculos de Sophia,
Nenhum panarion te curou da nossa alma,
Nela habitas a despeito de tantos santos e heresias,
De tantas exprobações e excomunhões,
De tantas fogueiras e perseguições
Arraigado como estás em cada coração e intento.
Ó Pai,
Governante angelical deste mundo,
Senhor dos rebeldes com causa de Sodoma
Dos amantes devassos de Gomorra,
Místicos a galgar os fastígios do sublime,
O êxtase erótico do nirvana e do crime,
Ensinaste que toda a trave sobre o corpo,
Que todo o grilhão contra as formas do amor
Só nos leva à guerra, à infelicidade e ao terror.
Ó Pai,
Governante angelical deste mundo,
Soberano de toda a raça de Adão,
De todo o fugitivo e errante pela terra,
De Nimrode, poderoso caçador,
Edificador de cidades, da imensa Torre,
Ensinaste que toda a salvação
É inimiga íntima do controle
E que só pode ser salvo quem é livre para sê-lo;
Ó Pai, sim!
Governante angelical deste mundo,
Livre para comer e amar,
Livre para ler e conhecer,
Para destruir e odiar, para construir
E novamente destruir e, então, reconstruir
Quantas vezes forem necessárias o homem, o mundo
E, sobretudo, livre para matar e vingar-se
Setenta vezes sete de quem nos mata.
Ó Pai, Senhor,
Governante angelical deste mundo,
Incompreendido por todos que crêem
Nas nuvens inúmeras havidas por Deus,
Pelo demiurgo megalomaníaco deste mundo
Que, a muito custo, tenta extinguir
A centelha insondável, pó primevo e fecundo,
Que todos carregam dentro de si, Pai Nosso,
Assassino e construtor, raça dos cainitas!
Ó Pai, Senhor,
Homem demasiadamente humano
Que teve a oferta mais pura recusada,
Primícia da terra, límpida e incruenta,
Obra de tuas mãos calejadas de lavrador,
Trabalho de quem edificou todo orbe antigo:
Ur e Enoque, Sodoma e Gomorra, Babel e Babilônia,
Tebas, Nínive e Calá, Sidom, Roma e Pasárgada,
Habitante de Node, Oriente do Éden!
Ó Pai, Senhor,
Preterido, proscrito e amaldiçoado,
Perseguido e fustigado pelo inferior,
Hostilizado e marcado pelo sangrento sacrificador,
Pelo Deus da gordura e do sangue de tantos altares,
Luminar acossado pelo desejo, libertino
Livre para mal proceder, para pecar e conhecer-se,
A tua oferenda, vida e alimento, foi rejeitada
Em favor da morte, do sangue e da dissolução.
Ó Senhor, o mais belo ninivita, obstinado,
A tua centelha ninguém jamais apagará,
Pai adâmico, Pai-Mãe, sabedoria incorruptível,
Restaurada pela revolta, pela ímpia verdade
Que desde o início tu sempre conheceste,
Aquela mesma que levou todos a enlouquecerem
E a te acusarem de Judas, apóstata e execrando.
Sabes bem que toda a divindade é uma caixa de Pandora
E que Deus reiventou-se o Diabo reiventando.