Crónicas : 

Onde é a merda da sacristia?

 
A pedido de várias famílias...

A casa continua lá, o jardim está igual naquele ar de semi-abandono que sempre teve, a sebe por aparar à espera das vésperas de páscoa, relva murcha e sedenta de um afago liquido que chegava quando enfim chovia. O branco da casa não é bem branco, é assim algo entre o sem cor e o desmaiado a conferir o verde morto das portadas e janelas. Não se pode sequer falar daquelas coisas que normalmente se falam, dos cheiros em dias de festa ou porque a memória me atraiçoa o que acho inverosímil, ou porque simplesmente nunca houve festas, acompanhadas das tradicionais correrias das crianças, das gargalhadas das tias pudicas ante a indiscrição de um tio mais malandro. Nem sequer o cheiro das rabanadas em vésperas de natal, as luzes do presépio a brilhar em mil esperanças da madrugada que anunciam.
Ainda passo em frente dela mas não me apetece entrar e a arrumação que lhe prometo faço-a no sótão das minhas memórias, no canto que não quero mexer, quero-o assim empoeirado e bafiento. Mal respiro com medo que um sopro involuntário desvende algo que não quero recordar.
É só uma casa, muitos chamam a isto casa, e neste momento as reacções que me provoca são muito parecidas. Deram-lhe uma remodelada, alguns recursos mal se percebem porquê, mas continuaram sem regar a relva, sem aparar a sebe, o branco continua desmaiado, o verde das janelas deixaram de representar esperança, antes flores murchas em campa abandonada. As tias continuam por aí, já os tios malandros desistiram e à noite bem cedo fica deserta.
É uma sensação estranha a de estar numa sala que já senti minha e estar rodeado de estranhos, ver as contribuições quase gerais e sentir ventos de mediania para ser simpático, ver rasgos de brilhantismo a serem pura e simplesmente ignorados e a mediocridade aplaudida quase de forma histérica. A vara engordou e tomou formas porcinas. As porcinas engordaram e tomaram formas suínas, pavoneando-se despudoradas numa espécie de pseudo vedetismo onde chafurdam gulosas e gordas.
Não é uma crítica, é uma constatação, já desisti de criticar. Só queria saber onde é a merda da sacristia para encomendar a missa de fiéis defuntos, entregar ao pároco da freguesia uma esmola choruda e dar-lhe os parabéns pela lenta agonia a que nos devota. As tias gostam disso, da tristeza e corações trespassados.

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jaber
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Enviado por Tópico
Caio
Publicado: 10/10/2012 17:33  Atualizado: 10/10/2012 17:34
Membro de honra
Usuário desde: 28/09/2011
Localidade: Olinda, Pernambuco
Mensagens: 898
 Re: Onde é a merda da sacristia?
pelo menos a família "vital" pediu publicamente hahahahaha

"É uma sensação estranha a de estar numa sala que já senti minha
e estar rodeado de estranhos, ver as contribuições quase gerais
e sentir ventos de mediania para ser simpático, ver rasgos
de brilhantismo a serem pura e simplesmente ignorados
e a mediocridade aplaudida quase de forma histérica."

pois é...

esse texto dói para quem gosta da casa antiga. parece saudosismo,
aquele negócio de "porque no meu tempo...", mas não é. quem dera
fôssemos uma trupe de quatro ou cinco saudosos, mas sabemos bem
que somos muitos mais a pisar nas correntes dos fantasmas para
que façam mais barulho e não escapem. a casa precisa de pintura,
o jardim precisa de água e a porra do site precisa de vida.

abração, jaber, e obrigado por republicar


ps: a minha visão laica enxerga em suas crônicas
uma grande dose de inspiração. devo agradecer,
pelo próprio site que gosto tanto, sua permanência.

Enviado por Tópico
AnaMartins
Publicado: 10/10/2012 18:15  Atualizado: 10/10/2012 18:15
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Localidade: Porto
Mensagens: 2220
 Re: Onde é a merda da sacristia?
Só a tinta e as pontinhas dos dedos que este texto fez gastar em tempos... rsrsrsrs

Beijos

Enviado por Tópico
HelenDeRose
Publicado: 10/10/2012 21:12  Atualizado: 10/10/2012 21:13
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 Re: Onde é a merda da sacristia?
Li seu texto, Jaber e fiquei refletindo como tudo muda com o tempo, nisto incluo, pensamentos, pessoas, desejos etc. Tudo é uma questão de compreender como aceitamos, ou não, tudo e todos. Os estágios são diferentes, os degraus mudam, os instintos se transformam e assim por diante. Nada continua exatamente igual, tudo se transforma, até mesmo o Planeta. Se conseguimos acompanhar? Não sei, depende do entendimento de cada um, isto cada um deve saber sua resposta.

Estranho? Não, não é estranho.

Helen.