Bernardo arranjou um emprego como relojoeiro. A sua vista, apesar de já não ser a mesma de outros tempos, ainda dava para aguentar o trabalho, à custa de algumas horas extra a que dedicava, principalmente aos sábados, longe do olhar inquisidor dos colegas cerca de uma geração mais novos do que ele.
Bernardo sempre tinha cultivado a sua paixão secreta pelo diapasão. Mais do que gostar de ver - se entendermos por ver algo mais do que simplesmente olhar – Bernardo gostava de ouvir, ou melhor, fazer-se ouvir e ouvir-se.
Bernardo estava a atravessar gravíssimas dificuldades mentais e financeiras, o que tornava as suas tarefas penosas, mesmo que tal sacrifício satisfizesse uma necessidade obsessivo-compulsiva que o acompanhava desde sempre, e nesse aspecto tanto o satisfaziam as engrenagens dos relógios ou as vibrações do diapasão. Até que um dia Bernardo teve a genial ideia de observar as manchas solares a olho nu horas a fio e assim cegar. Não nos esqueçamos das circunstâncias históricas particulares desta estória. Vivia-se então em 2012.
Bernardo conseguiu baixa médica para assistir ao apocalipse. Não sei se me faço entender. Ficou cego para poder ouvir e ficou cego para poder tocar.