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Batoré

 
BATORÉ



A cidade acordou ao som dos Beatles ; Eleanor Rigby atropelava o sino da igreja em doce heresia , as pessoas apuravam o ouvido; naquela manhã de 1966 , nascia o serviço de alto – falante da Prefeitura Municipal da Várzea Pequena.Dentro do mercado público uma cabine de madeira e Eucatex marcavam os domínios de Batoré , metro e cinqüenta (e cinco) de musculatura marombada , cabelo Black Power de rebelde sem causa , calça jeans contrabandeada sabe Deus de onde, “Make Peace Not War“ na camiseta modeladora do peito minimalista e musculoso , um cavanhaque atrevido avançando em direção á boca carnuda , de riso fácil , um tesouro em dentes dourados ; a animação movida a salário mínimo , dois olhos convergindo para a ruga circunflexa e perene na testa curta , um baita cordão de prata segurando o brucutu marretado do fusca do cunhado , agora simulacro de medalhão pacificista; enfim ,um homem de estilo .
Cantarolava enquanto limpava as capas dos elepês, o primeiro lote de animação subvencionada pela prefeitura ; Waldick Soriano acotovelava Teixeirinha que escorava os Golden Boys e a versão 66 das Quatorze Mais. Aceitamos doações, trombeteava o cartaz lá na porta . No braço automático da vitrola , aguardando vez ,o disco mais recente dos Incríveis , chorando alguém morto em plagas vietnamitas e a guerra dos seis dias , na não menos remota Israel.
E a vida corria , em gonzos azeitados . Na tarde mormacenta do mês de outubro , dedicado á Santa Padroeira , a Kombi velha , branca em melhores dias , maracujá sobre rodas envolto em poeira e estranheza , chegou , á reboque do caminhão da roda gigante . Um alto–falante aposto aquela precariedade, anunciava aos quatro ventos a excelência do Elixir de Mastruço e a força do Professor Asa Negra, o magnífico , campeão inconteste de luta livre americana , flagelo dos cabras frouxos e versão tropicalizada de Sansão , ao seu alcance , naquela noite , no Clube Municipal, por meros quinhentos cruzeiros de entrada , com direito a vistosas demonstrações de sua arte, inclusive o temível tacle , a arte de voar sem asas , estraçalhando o oponente .
Em frente á Praça do Fundador , a Kombi estrebuchou e calou-se .Desceu do veículo um homem alto ,musculoso, queimado pelo sol , feições esculpidas á faca cega em sua notável feiura , pernas torneadas por uma justíssima calça Topeka , sobre um par de botas com adereços prateados , bigode decaindo pelos cantos da boca , camiseta preta , cavada ,ensopada de suor , exalando um bodum misturado á desodorante Avanço ; da nuca , precipitava-se um frondoso e luzidio rabo de cavalo cheirando á Glostora , caindo- lhe sobre as costas robustas ,enquanto de megafone em punho , prosseguia na louvação do Elixir e as bravuras de Asa Negra , ele mesmo, alardeando seus atributos , encarando a meninada da praça , que freava as bicicletas, na contemplação do “portento brasileiro e internacional de força e vigor” , entre a perplexidade e o riso fácil das infâncias despreocupadas .
Após uma hora naquele sol que não estava para brincadeira, entrou no mercado publico, aboletou-se numa mesa do bar do Antonino e ordenou uma cerveja , traçada sem mais delongas entre um pedaço de carne-de-sol e uma lasca de queijo de coalho , regurgitados e arrotados com a presteza e sonoridade dos estômagos privilegiados e apressados. Liberando um hálito mais pra urubu dispéptico que qualquer outra coisa , indagou da localização do serviço de alto-falante, enquanto pagava ao desconfiado Antonino , que via das dúvidas, dava na sua foice um trato de esmeril , sob o balcão, enquanto indicava o cubículo no final do corredor . O troco deslizou sobre o balcão de fórmica arranhado pelo transito rastejante da aguardente, do copo ao bico da freguesia. Um punho envolto em pulseira de couro e metal reluzente, bateu na porta entreaberta. Dessa vez, o hálito demolidor despachava um boa tarde sorridente e de mão direita estendida , com direito ao fétido complemento :
- Epitácio Nepomuceno , vulgo Asa Negra, lutador , mágico e andarilho . Toque aqui os ossos , meu distinto . Falo com o grande Quincas Galdino , fera saltitante e premiada do agreste da Paraíba ? Orgulho da Academia Princesa do Capibaribe ?
Batoré ergueu-se da cadeira entrevada , alisou o braço esquerdo , a cabeleira exaltada e confirmou-se , num riso só .
- Meu nobre professor, a que devo a honra , após tantos anos?
- Irmãozinho, estamos em turnê há três meses; a grana tá curta , estou dando beliscão




em azulejo e nó em pingo d’água por dinheiro ; até a Vilma se mandou com um prestamista . Imagina o futuro de um corno liso : merda granulada ou não é ? Vim propor uma luta , amanhã á noite, no Clube Municipal .A gente faz só a munganga , o povão gosta , você ganha , ganho eu e tudo bem .
- Estou nessa.
E foi mesmo , ou melhor, foram mesmo.O resto do dia, foram peripécias do professor a encher as pequenas ruas : rebocar um jipe com o ensebado e duvidoso rabo de cavalo , imobilizar o mesmo o jipe ,engrenado em primeira marcha,com as mãos e outras sansônicas tarefas das quais resolvemos poupá-lo, amigo leitor , pois afinal de contas a luta entre Batoré e Asa Negra já era anunciada em megafone, cartaz grudado e serviço de alto – falante , aos quatro ventos e mais alguns adicionais se a diminuta cidade os comportasse em sua pequenez .
Comentava-se da sacristia do circunspecto padre Eduardo ao forro verde da mesa de bilhar, onde Neco Gato desfolhava os otários dos seus parcos cruzeirinhos entre uma talagada da incandescente Serra Grande e a tacada precisa tal bote de cascavel ; num bilhar onde até o giz era viciado, o comentário era um só:quem venceria a grande luta, de preferência para contar a história de um arranque só , entre uma cerva e outra,de queixo inteiro , no bar do Antonino?
È , de queixo inteiro sim , pois no último embate registrado nos arquivos muito vivos da cidade ,dois anos atrás, Batoré derrotara Maciste de Oliveira, com o saldo de uma graciosa fratura na tábua do queixo do adversário , região teimosamente chamada de mandíbula pelo rubicundo e luzidio doutor Toninho,(habilitado nas artes médicas, na vizinha Campina Grande) testemunha ocular e manual da fragorosa derrota infligida ao alquebrado e desde então desqueixado Maciste .
Ingressos vendidos em tempo recorde, ás oito da noite , a multidão comprimia-se no pequeno porém decente e superfaturado clube municipal , na expectativa suada e confusamente fedorenta , mistura de perfume Lancaster , pum de batata doce e cheiro de sabonete Vale-Quanto-Pesa , entremeado á fumaça de cigarro Astória ,Gaivota,roliúde , pé de Judas e quejandos , conforme bolso , gosto e pulmão do freguês.






A venda de pipoca , cachaça , mungunzá e amendoim corria solta ; na bolsa de apostas Batoré vencia em três para um . No centro do dancing, nasceu um ringue cercado por cordas , agora inspecionado pelo velho Otílio Cegueta,caolho de espinho de angico,óculos redondinhos que lhe davam um ar meio vago de Virgulino apombalhado, único expert regional em luta livre por consenso próprio e árbitro auto-referendado e aceito para a refrega que se aproximava.
Na tribuna de honra, confabulavam o prefeito João de Toninho e os vereadores da situação, sobre a necessidade urgente e imperiosa de início da quinta reforma do clube , para melhor conforto e segurança dos cidadãos e grande alento nas contas bancárias dos políticos, considerando-se ainda que a cidade não comportava mais praças além das cinco já existentes nas suas três ruas simultaneamente principais e secundárias.
Ás nove da noite em ponto, chegam os lutadores,acompanhados das respectivas equipes,com direito á lata d’água e gelo municipais.Batoré, engalanado em roupão de seda,com letras brancas, Asa Negra fazendo jus ao nome, roupão de seda preta que já vira dias melhores,nas costas uma duvidosa águia bordada pelo método da tentativa e erro.Segundos fora,vão ao centro do ringue, xingam-se e ameaçam-se de estraçalhamento mútuo entre mugangas mil ,conforme combinado.
Otílio morde o charuto de pacaia e dá início ao combate,quinze assaltos de três minutos por um de descanso , os oponentes se estudam , arrodeam – se , cenhos franzidos e muita força para não gargalhar, Asa Negra acerta o batorêico Black Power num sonoro tapa, prontamente revidado por um chute no quadril ; a platéia urra e pede mais ; a concentração é grande, a seqüência de porrada combinada não pode ser esquecida; Batoré negaceia o corpo e toma um sonoro bofetão no pé-do-ouvido, corcoveia , fuça o ar, recupera-se e arremata em tacle sobre o antagonista ; Asa Negra segura a perna no ar e empurrando-lhe o pé para trás, faz Batoré aterrissar em graciosa cambalhota ; termina o primeiro assalto, ecoa a primeira vaia : o pouso foi suave demais ;Otílio recomeça ; temos uma seqüência de rasteiras e simulacros de rabo de arraia ; Asa Negra sai de bandinha feito caranguejo ; o nanico Batoré já bronzeando de suor consegue aproximação ; agarra-o pelo pescoço ; saraivada de socos e cotoveladas no atarantado




Asa Negra , que milagrosamente sai das garras do minúsculo algoz e planta-lhe sonoro bofetão na cara lisa ; Batoré cospe a prótese dentaria de cinco mil cruzeiros, agora caída e fraturada na queda em três inflacionados pedaços; a multidão explode num grito de pega-esfola-estoura-e-mata ;reinicia o combate ; coloca-se o protetor bucal esquecido no caneco da água ; agora Asa Negra beija a lona , após engenhosa manobra que lhe imobiliza o braço direito; ruge feito leão e sacode o oponente para o alto, ninguém é perfeito,as cordas do ringue também, Batoré aterrissa ou melhor amerissa de cabeça no caldeirão de mungunzá de dona Mãezinha ; Otílio reinicia o embate, ergue-se Batoré com mungunzá agranelado a adornar-lhe a juba, passa a mão pelos lábios carnudos ; reassume a pose de mini-gostosão no ringue ; mira a coxa esquerda de Asa Negra , que esperava um tacle , o pontapé atinge em cheio os preciosos envirilhados do lutador , que perdendo a compostura, segura os dito cujos com uma das mãos e com a outra varre do ringue o Batoré, com uma tapa de urso que lhe faz deslizar até os pés da primeira-dama; Rosilda, assustada e loura oxigenada caprichando no laquê ; retorna Batoré ao ringue, em fúria saltitante e cabisbaixa .
Otílio faz menção de reiniciar o combate e leva um inesperado dedo no olho, o charuto aceso cai-lhe sobre o peito da camisa modelo Volta-ao-Mundo novinha , puro náilon , agora , pura peneira ; no desespero do calor,ou no calor do desespero,vai de tamborete nas costas de Batoré, que lhe arremessa á platéia em sonoro tacle ; Asa Negra continua avaliando a entornação do caldo, ou melhor, o frigir dos ovos ; a platéia descabela-se e começa a aplaudir ; melhor que o Tele Catch Montilla, grita em uníssono ; Batoré entra de rasteira e Asa Negra sucumbe sob as cordas até as pernas de dona Ana, fornecedora de hóstias da paróquia e mestra no combate com sombrinha e cadeirada ; Asa Negra segura ainda os preciosos, recebe uma cotovelada de Batoré e em certeiro tacle, devolve-o ao ringue , abraçado á velha Ana ; Otílio encontra o apito , a essa altura , no tabuleiro de amendoim, encerrando o combate; nada feito, a platéia tomou gosto pela briga e agora a luta é democrática, digo, agora todos contra todos, depois a gente vê porque foi mesmo ; entra em cena a fleumática guarda municipal , que a golpes de cassetete , botinada nos testículos mais atrevidos e generosas doses de dedos nos olhos, consegue acalmar os ânimos da platéia , porque os combatentes, a essa hora, já rachavam a bilheteria e seu adorado vil metal, dentro da Kombi, a caminho de Deus sabe lá onde , rindo a bom rir.


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