- Vamos entrar! Acomodem-se nos vossos lugares. Vão tirando os terços para fora.
Veva comandava os fiéis como um sargento, gesticulando e projetando a voz em todas as direções. Aqui e ali, pequenos grupos, familiarizados entre si, fruto de outras peregrinações organizadas pela vidente, com vista a que as pobres almas devastadas pelos meandros do desconhecido, pudessem pagar promessas de familiares que já partiram e se esqueceram, enquanto vivos, de cumprir a sua parte no acordo celebrado com os santos da sua eleição.
- Vamos lá, minha gente! Vós sabeis que há coisas com as quais não se brinca...
Quanto mais depressa vos libertardes desse fardo que vos atormenta, melhor para todos.
O Senhor Joaquim, motorista de passageiros de pesados, já reformado da Rodoviária, piscava o olho à roliça mulher, num ato de cumplicidade, por conta de um negócio lucrativo, gerido a meias e em plena ascensão. A fé dos cristãos, atormentados pelas recorrentes provações da vida, estava nas mãos daquela parelha, dita inseparável, nos negócios e na vida pessoal. Nestes momentos, ficavam para trás, João Ferrador, marido de Genoveva e a Dª Clarinda, esposa dedicada de Francisco. Por uma questão de poupança, longe de qualquer pretensão de querer insinuar o que quer que seja, Veva e o disponível motorista partilhavam o mesmo quarto nas pensões onde a excursão acabava por pernoitar e descansar os pés já em bolhas, depois de cada trilho ou altar visitado.
O autocarro da empresa “Vidigal” arrancava em primeira, já ao som do discurso estridente de Veva:
- Como sabeis, isto não é uma excursão, mas sim, uma peregrinação. Vamos dar início ao terço em homenagem à Nossa Senhora de Fátima, para onde nos dirigimos, a fim de que muitos de vós possam pagar as promessas em falta dos vossos finados entes queridos.
Genoveva benzia-se e como se de um maestro se tratasse, dava o tom para que se iniciassem as rezas que mais pareciam uma ladainha cantada, em uníssono:
- Avé Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco....
Chegados à Estação de Serviço de Santarém, ainda, meio anestesiados com a dormência da ladainha do santo rosário, o grupo de cerca de 50 pessoas saiu para tomar o pequeno almoço e desentorpecer as pernas. Afinal, barriga vazia não se alimenta de orações e a cabeça fica ainda mais fraca e suscetível quer à eminência de milagres, quer à ilusão de castigos sobrenaturais.
Anunciado o interregno de 30 minutos, o tempo suficiente para recarregar baterias e despejar a bexiga, cheia de urina e toxinas envenenadas de culpa e mau olhado das vizinhas invejosas e hereges, os fiéis atropelavam-se para sair do autocarro e encher os tabuleiros da estação de serviço de galões e sandes de carne assada, sendo que os pastéis de nata também estavam na mira dos mais insaciáveis, como complemento ao pecado da gula.
No fim do repasto matinal, os homens dirigiam-se para o urinol sem qualquer constrangimento e as mulheres atropelavam-se numa fila a que chamavam de bicha, porque a dita cuja era demasiado comprida e o relógio não se intimidava e acelerava os ponteiros, sem compaixão, ao som da buzina do autocarro do senhor Joaquim.
- Vejam se estamos todos. Por favor, cada um que veja se o vizinho do lado já está no interior do autocarro, vociferava Veva, convicta das suas funções de cicerone e de organizadora responsável.
As senhoras de meia idade corriam para o autocarro, já com o motor a trabalhar, algumas ainda ajeitando as cintas, mal vestidas, sabido que é que a pressa é a maior inimiga da perfeição.
Veva agarrou no microfone e, sem se fazer rogada, ou não fora ela uma líder espiritual desenvolta, foi impondo as regras do bom peregrino:
- Vou passar entre vós e receber o dinheiro da peregrinação. Como sabem são 150,00€ (trinta contos), para aqueles que ainda não estão familiarizados com o euro. Portanto, inclui a visita ao Santuário de Fátima, as figuras em cera, velas grandes e ainda a estadia no hotel onde pernoitaremos, o jantar e o pequeno-almoço de amanhã. Como podem ver, é uma pechincha. E não há nada que pague o facto de no regresso virem todos mais leves, com as promessas pagas e a alma em paz.
Se bem o disse, melhor o cumpriu. Naquela manhã cinzenta, do mês de Outubro, do ano de 2002, lá foi, de lugar em lugar, cobrando o valor da excursão. Enquanto o saco de pano, curiosamente azul, da vidente, se enchia de notas de 50,00€, Joaquim desanuviava a cabeça das rezas, com a cassete do Quim Barreiros, cujo som, de tão alto tornava quase impercetível a letra do CD “Na garagem da vizinha”, provavelmente a personagem responsável pelo mau olhado, em série, de que haviam sido acometidos grande parte dos fiéis do autocarro.
As pessoas tentavam, mentalmente, fazer a conversão do escudo para o euro e só depois, quase atónitas, depositavam o pagamento no saco de Genoveva, depois de concluirem que se tratava de 30 contos.
Esquecidos das orações e do propósito da “viagem”, o coro tomava corpo e rejubilava com o refrão:
- “Mete o carro, tira o carro, na garagem da vizinha...”
Veva já dançava com o Senhor Alberto, no meio do autocarro, quando uma travagem inesperada projetou a vidente para o colo do Senhor Armando, que embalado com o tema do Quim Barreiros, benzeu-se e pediu desculpa à virgem, por sentir rijas as nádegas de Genoveva, nos ínfimos segundos em que esta lhe caíra, literalmente, no colo, prazer que poderia saborear, não fora a esposa estar sentada ao seu lado.
Ao chegar a Fátima, o Senhor Joaquim estacionou o autocarro num parque público e Veva foi ditando a sua autoridade e conhecimento de causa, com a advertência de que todos os minutos estavam contados para que se pudesse cumprir na íntegra o programa da peregrinação.
- Venham todos, atrás de mim, para o recinto. Entretanto, eu vou comprar as figuras de cera das promessas e as flores para a Virgem e vocês podem adquirir, a preços módicos, as velas mais pequenas, no próprio recinto da capelinha das aparições. As velas maiores sou eu que compro, tal como vos expliquei durante as consultas.
O Senhor Joaquim apressou-se a informar que as malas com o almoço ficavam ainda dentro do autocarro e que só da parte da tarde é que iriam ao hotel deixar as malas.
Veva, por sua vez, esclareceu que a procissão das velas seria à noite, após o jantar, que, no hotel “Casa das Irmãs Dominicanas”, seria servido, impreterivelmente, às 19 horas.
A manhã tornou-se pequena para resgatar a paz, àquelas almas sequiosas de pagar as promessas em dívida para com Maria. Uma vez a missão cumprida, Joaquim abriu o autocarro e as mesas desdobráveis encheram-se de petiscos dignos dos bons cristãos, que com esta coisa do estômago vazio, convém reiterar que não se brinca e os santos não levam a mal.
O hotel de decoração básica e simples, convidava ao retiro e à oração, até porque no seu interior possui uma pequena capelinha e o jantar caseiro, ao mesmo tempo que requintado, apresentou-se retemperador para aqueles que, a seguir se iriam dirigir ao palco das aparições, onde milhares de pessoas participariam na procissão das velas, sem dúvida uma das mais marcantes cerimónias religiosas.
É de fé que trata esta narrativa, mas também das coisas mundanas que a par e passo com as espirituais preenchem o dia a dia das comunidades e as tornam tão interessantes e ricas. Após a procissão das velas e de regresso ao hotel, com a sensação de dever cumprido, a algazarra soava nos corredores da “Casa das Irmãs Dominicanas”, no momento em que cada um se recolhia ao seu quarto.
Tomás, o neto matreiro da Dª Efigénia, com a curiosidade aguçada das crianças, apercebeu-se que Veva e Joaquim partilhavam o mesmo quarto.
Na manhã seguinte, a viagem de retorno a Setúbal fez-se necessária, mas os rostos dos homens e mulheres crentes carregavam, nitidamente, semblantes mais leves, novamente, ao ritmo do terço, e dos pimbas do Senhor Joaquim.
Veva apossou-se do boné do motorista e lá foi, de lugar em lugar, pedindo uma gorjetazinha para o Senhor Joaquim, quando Tomás resolveu esclarecer a dúvida que lhe assolava a mente, desde a noite anterior:
- O Senhor Joaquim é casado, não é? Então, porque é que ele dormiu contigo esta noite?
Genoveva fez de conta que não ouviu a inconveniência do pequeno Tomás e lá foi aumentando o volume de voz, à medida que ia enchendo o boné do motorista de moedas de 1,00€ e advertindo os fiéis para que em breve a fossem visitar, para poderem aferir o resultado do pagamento das promessas, que, segundo ela se traduziria numa imensa paz e tranquilidade de espírito e melhorias a nível da saúde física.
- Meus senhores, já chegámos. Espero que tenham gostado da viagem e se alguma coisa não esteve do vosso agrado, peço desculpa. Vamos lá fora tirar as vossas malas.
Os garrafões que sairam de Setúbal atestados de vinho, regressavam, agora, cheios de água benta, acompanhados de pequenas lembranças, terços, medalhinhas, santos, etc... comprados no santuário ou nas lojas nas suas imediações, objetos que iriam fazer a delícia dos familiares e amigos a presentear.
À chegada, Tomás insistiu ao ouvido do avô, já que a avó, DªEfigénia, fez-se desentendida e achou melhor não lhe dar crédito:
- Oh avô! A Dª Veva e o Senhor joaquim dormiram juntos que eu bem os vi entrar para o mesmo quarto.
Lourenço, avô de Tomás, sorriu e passou a mão pela cabeça do seu netinho de 5 anos.
- Isso foi impressão tua, filho. Tu estavas muito cansado e o que tu viste foi o Senhor Joaquim a levar a mala da Dª Veva para dentro do quarto.
- Não foi nada! Ele fechou a porta, que eu vi.
- Oh Efigénia, tu ouviste o que o Tomás estava a dizer?
- É melhor mandá-lo calar. Esse catraio tem uma imaginação muito fértil. Também, agora, os miúdos passam o tempo todo a ver televisão e nem tudo o que lhes é acessível é para a idade e compreensão deles.
- Olha mulher, eu acho é que os putos, agora, são mais espertos de olhos fechados do que nós eramos de olhos bem abertos e nunca te esqueças que onde há fumo, há fogo.
Efigénia deu meia volta e deixou Lourenço a falar sozinho, no que dependesse de si a sua mentora nunca seria desacreditada, apesar de a descoberta do seu neto já ter sido motivo de conversa entre os fiéis.
Tomás indignado com o facto de não valorizarem a sua recente descoberta, resolveu questionar o avô:
- Diz-me uma coisa, avô! O que é que tu fazias se a avó fosse dormir com o senhor Joaquim?
Ao mesmo tempo que Lourenço respondeu com uma estridente gargalhada, Efigénia repreendeu Tomás, que mais uma vez viu recalcado o seu direito à liberdade de expressão.
- Sabes avó? Sempre me disseste que Deus se zanga com os meninos mentirosos e eu só estou a dizer a verdade...
Tarzan o pequeno cão da família veio insinuar-se a Tomás andando à volta do menino reivindicando brincadeira e acabou por salvar Dª Efigénia de tamanho constrangimento.
- Anda Tarzan! Só posso falar contigo. Os adultos não acreditam nas crianças.
- Vês o que fizeste ao teu neto? O Tomás vai ficar com este episódio caricato recalcado e o pior é que eu temo que ele tenha mesmo razão e o decoro não seja certamente uma virtude da Dª Genoveva.
Efigénia acordou sobressaltada e limpou o suor frio que lhe escorria pelo rosto, afinal tratava-se de um sonho ruim, corrigindo, para ela, fora mesmo um pesadelo, já que tinha Dª Genoveva como uma santa mulher e poder-se-ia mesmo dizer, que mais do crente nas suas capacidades mediúnicas, era sua admiradora.
Pensou naquele preciso momento que, desta vez, não sonhara com coisas abstratas, mas transportara episódios da vida real para o sonho, ou quem sabe o próprio sonho lhe estava dando pistas, através de mensagens simbólicas, pelo sim, pelo não, iria ficar de olhos bem abertos, afinal, ela sabia que o maior cego...
Maria Fernanda Reis Esteves
52 anos
natural: Setúbal