Por vezes sentimos que todos nos olham Afaga-nos o incómodo de sermos nós, Que tudo está mal. Desagradamos a todos os que se cruzam connosco. A roupa que vestimos atrapalha A camisa parece querer sair das calças, As meias escorregam e enrolam-se por baixo dos calcanhares, Os sapatos achinelam A sola emita o som irritante de um patinho de borracha, A camisola parece estar torta A malha deformou e encolheu após a lavagem, O casaco prende os movimentos. Tudo começa mesmo antes de sair de casa, O cabelo ganhou uma forma esquisita, Empinou-se para um lado, Acachapou em cima, encaracola atrás. Não há pente nem secador que consiga domar tão irreverente atitude.
Já na rua descobrimos que ocupamos espaço, A nossa imagem está por todo o lado. A nossa sombra acelera por baixo dos pés, Passa-nos à frente Expõe a nossa silhueta na nudez da calçada. Procuramos um refúgio nas sombras dos beirais E com isso temos o secreto anseio de nos livrarmos da nossa sombra. Mas, tanto esforço depressa se mostra inglório. Olhamos para o lado, Eis a nossa imagem assediante nas montras dos estabelecimentos E como um azar nunca vem só, Se na noite anterior choveu As poças de água são o espelho da nossa alma.
Cáusticos, não inventamos novos hábitos, A bica matinal no mesmo café de sempre Onde o empregado ao descortinar a nossa chegada na contra luz da entrada Em artes de contorcionista e de adivinho lança o nosso pedido para lá do balcão. E mesmo que não seja esse, nessa manhã, o nosso desejo, Embrulhamos a nossa vontade no papel pardo da delicadeza E aceitamos com um sorriso contrafeito o que nos é colocado na frente.
Quando pensamos que estamos a salvo de olhar a nossa imagem- o inevitável acontece! Na parede do café há sempre um espelho meio escondido por trás de garrafas Estrategicamente colocadas com o risco do nível a meio ( há um em papel amarelado com uma letra em tons de gordura que informa: "as garrafas expostas são para consumo desta casa"), A nossa expressão aparece reflectida no preciso momento Em que levamos a chávena à boca (e sentimos o velho incomodo de alguém que nos olha, admirado, Parecendo querer dizer-nos que estamos a enfiar o nariz na chávena), E se olharmos com mais atenção, O espelho reflecte outro espelho mesmo nas nossas costas, Reproduzindo até ao infinito o nosso rosto, Nesse momento somos a memória viva do rótulo do fermento Royal. Não vale a pena fugir ao inevitável.
Em dias assim, o mais ajustado É fazermos parte de um rio de gente anónima Sem nascente nem foz.
*Bom degustar dessa tua palavra. Estava saudosa. Difícil quando as nossas intenções, mesmo as cotidianas, são mal interpretadas. Estou quase desistindo da humanidade. Estou lúgrube hoje, perdoa-me.Frágil e exaurida, de alma e mente. O anonimato me chama. Tua escrita me envolve e fica em mim. Obrigado BeijoKa*