Cerzia os remendos da noite passada
Os primeiros raios de sol.
Ela sabia-o:
Os tumultos assim vividos
Não enchem os jornais da manhã.
Na noite que agora termina
A mulher desvendou novos mundos num outro corpo,
Que entrou e saiu da sua cama,
Até aí uma ilha deserta.
Percorreu com os dedos,
Num arremesso de volúpia nocturna,
Zurzia pela luz amarelada emitida do velho candeeiro ainda acesso,
A memória do corpo do homem,
Que ela encontrou náufrago a deambular à porta do café
A cantar velhas canções de marinheiros.
(sempre fora e ainda é uma mulher tímida.
Gracejou consigo.
A variação de uma letra numa palavra tudo muda
- É a maquina simples de Arquimedes.
E mudou a letra
Tímida – Temida.
Sim, ela hoje sentia-se uma mulher temida)
A arfar em cada toque o medo e o prazer,
Excitante na descoberta de cavernas e coitos
Escondendo nos húmidos corpos - os musgos de indecisão,
Deu-se à descoberta das cavernas mais profundas
Onde avançou no desvendar de pinturas rupestres
De um desejo há tanto esquecido.
Nesse instante ela sentiu que era o centro da galáxia.
Talvez uma estrela,
Ou um cometa de cabelo esvoaçante.
Para ela essas definições cósmicas pouco importavam.
Envolta num turbilhão, o seu corpo feito vulcão - explodiu,
Espalhando pela atmosfera uma poeira fina
Com um odor de flor de amendoeira.
Pela encosta a lava arrefecia, lenta e pegajosa.
No mesmo modo como entibiavam os lençóis
Agora na cama abandonada.
Pontapeou as roupas que a pressa da noite espalhou pelo chão,
Apeteceu-lhe cantar.
Observou o seu corpo nu ao espelho
Ainda havia beijos a florear no seu peito.
Sacudiu os cabelos para afastar o passado ainda morno
Com a mesma subtileza de quem acaricia as pétalas de uma rosa.
E o segredo da noite passada voltava de mansinho
Nas patas almofadas de um gato matreiro.
Imagina que as paredes brancas do seu quarto
(sempre gostou de paredes brancas),
Nesta manhã despertaram com uma cor rosa pálidas…
«as paredes podem manifestar surpresa e espanto» - sussurrou,
«e mesmo algum pudor».
Não escondeu com um sorriso malicioso desenhado nos lábios,
Gemidos e sussurros ainda ecoavam por toda a casa.
Ela por fim desceu à rua.
Avançou para a rua dos Murmúrios.
Das janelas dos prédios sussurravam línguas maliciosas,
Olhos por trás dos cortinados refogavam espertezas e maus-olhados
Os gatos vadios pareciam receosos de tanta bruxaria,
Escapavam-se por baixo das escadas do destino
E procuravam desesperadamente serem pardos à luz do dia.
Havia olhos que recuavam para o interior das casas
Intrigados e espantados,
No deslumbramento dos passos aligeirados
Com que a mulher ia vencendo a calçada.
Ela interroga-se!
Divaga nas palavras e nos pensamentos.
A memória é tudo o que fica para trás?
“Esta forma de andar de olhos no chão,
Com receio de enfrentar o futuro,
Como se este fosse o sol de uma manhã de primavera
Encadeia e obriga-nos a fechar os olhos,
E por isso caminhamos dia-a-dia de olhos cerrados.
A quem levanta os olhos e enfrenta o futuro chamam utópicos.
E as memórias? São essas a nossa retaguarda?
Representam elas os caminhos percorridos?
Ou são apenas velhas fotografias descoloridas?
As memórias são as pétalas de uma flor espalhadas no chão.”
“Sim as memórias são pétalas lançadas ao vento… que se dane a flor”…