Textos : 

o verbo e o profano

 
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não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


- e que faço agora com o teu pedido. não é justo. mas não é mesmo. sempre a embaraçar a vida do corpo que gosta de escrever – e eu perdido nesta escrita maluca. enfarpelada de roupa esfarrapada -
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ainda sou. sou um emaranhado de coisas que nem sei se existem – às vezes não sei ler. não sei escrever. não sei ouvir. fico perdido de mim – quando me encontro imagino que fiquei a contemplar o que já passou. digo imagino porque não sei por onde me perdi – o tempo é uma coisa estranha. andamos sempre encravados nas suas roldanas. mas no alinhar dos ponteiros. na hora de todas as verdades. percebemos que a carne foi comida e os ossos estão presos por um fio pobremente coberto por uma pele enrugada. engelhada. encarquilhada – é o desânimo. o corpo cai no silêncio e o desespero é agora uma folha de jornal de um ano que já não temos em memória. as novidades velhas. passadas. gastas. amarrotadas. as palavras comidas pelos ultravioleta. pelas intempéries estão agora rasgadas e quando queremos reler um pedacinho de uma história esquecida é tarde. tudo está desaparecido no tempo para sempre – o desespero de nada serve. o terrífico não tem remédio. resta-nos a resignação – paramos então pela primeira vez no tempo certo. o tempo da meditação. da reflexão. arrastamos o certo à coluna da direita e o errado à coluna da esquerda. o deve e o haver. e as contas são agora feitas com a ajuda dos dedos: e vai um. e vai nove. e vão sete. e vão sete e tira um. e tira nove e tira dois e tira três e a verdade do tempo consumido não necessita da prova dos nove – agora só me resta fazer um acordo de cavalheiros com o tempo. amarrar nas recordações. ano por ano. uma a uma. sem pressa. sem prazo. e voltar a descobrir tudo com um novo olhar. um novo toque. um novo sentir. um novo saber. e a sensibilidade a exigir sentimento para conseguirmos restaurar o que sobra das memórias que deixamos escapar – calmamente. reconstruimos as cores. as palavras perdidas. os abraços esquecidos. os afectos. os cheiros. os lugares. e os olhos nos olhos voltam finalmente a dizer coisas em silêncio e o tempo deixa de ser tempo humano. tudo é inexplicável à luz da física e tudo é agora presente. e o tom da pele. a voz. o riso e até os nomes voltam a ter sentido. e o farol acesso. e o caminho é a ponta do dedo a dizer: nós somos dali. dali mesmo. onde tudo se explica pelo amor – é possível restaurar pedaços de tempo. recuperar parte do que perdemos. mas infelizmente nada será como dantes. como com a gata borralheira. à décima segunda badalada a carruagem volta a ser abóbora e o sapato de vidro perdido na correria do tempo nunca mais encontrará o seu pé – demoramos anos a carregar coisas para dentro de nós. e o corpo a abarrotar de saber. sobranceria. vaidade. de palavras. de tanta bugiganga que sabiamente encaixamos em espaços ínfimos. e tudo é ouro e tudo é valor. e tudo é nosso para sempre – mentira que a crueldade do tempo no dia certo faz questão de mostrar com dor. de um dia para o outro tudo é um vazio. um deserto onde o único sentimento que sobrevive é o nosso arrependimento – há partidas que nos deixam vazios para sempre. restam-me as palavras que ficaram por dizer. estas. ocupam agora todo o espaço que há dentro do corpo – agora sei que ainda sou. sou uma luta contra o tempo e abrigo uma vontade enorme de um dia partir sem uma única palavra por dizer

nota de autor – “o que a Bíblia já sabia…” texto dedicado pela minha companheira vânia lopez ao meu texto “ainda sou” – em gratidão escrevi este meu texto / comentário – obrigado vânia pelo teu excelente e carinhoso poema – há entre nós uma estima que apenas o sagrado das palavras compreende


o que a Bíblia já sabia...


ah, se eu pudesse
desfronteirar o verbo e o profano
semicerrar os olhos no apocalipse
amansaria léguas de bem querer
de seus lábios que reclamam
e fazem crer em Deus novamente

ah, se eu pudesse
ensinar a memória das palavras
na rota da tua boca messalina
viver o tamanho de um isso
escondido no meio do ar
fazendo o violino cantar
até que dele possa tirar o último sorriso

ah, se eu tivesse
a sacra palavra
como hóstia na língua
confessaria em uma folha de papel
coisas esquecidas

falaria alto junto ao guia das ruas de São Paulo:
“Arrume todas as nossas coisas,
é hora “de fazer cumprir a lei”
 
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sampaiorego
 
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Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 27/08/2012 20:17  Atualizado: 27/08/2012 20:17
Membro de honra
Usuário desde: 25/01/2009
Localidade: Pouso Alegre - MG
Mensagens: 18598
 Re: o verbo e o profano
(a cada palavra tua) é como se o silencio falasse.
Eu que sou fã, agradeço a benção de sua amizade.
E como se fosse possível, saio cada vez mais (de seus versos)
arrebatada em admiração. Obrigada pela imensidão. bjs


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 29/08/2012 10:50  Atualizado: 29/08/2012 10:50
 Re: o verbo e o profano
Gostei muito desta prosa que desnuda e reveste o caminhar do ser humano que respira (aqui) só as palavras - servas ou senhoras - de todas as horas de quem ama escrever. Estas sabem o que fazer das/com as vivências e os sonhos... do autor.


Nem sei bem porque, lembrei-me do belo poema de Carlos Drummond de Andrade que vou deixar aqui, com sua licença.


O LUTADOR

Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem 3 há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.

Insisto, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
de zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
perpassam levíssimas
e viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue…
Entretanto, luto.

Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.

Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.

Iludo-me às vezes,
pressinto que a entrega
se consumará.
Já vejo palavras
em coro submisso,
esta me ofertando
seu velho calor,
aquela sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém,
outra seu ciúme,
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume.
Mas ai! é o instante
de entreabrir os olhos:
entre beijo e boca,
tudo se evapora.

O ciclo do dia
ora se conclui 8
e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.



Um abraço,

ALICE