Hoje caminho pela cidade, esse lugar poluído e sufocante que pode ser mágico e belo.
Parto do largo onde hoje mora o poeta "...da ocidental praia lusitana...” “guardião da praça, onde num outro século canteiros de tília perfumavam o ar, cobertos por bandos de chilreantes pardais.”
Vou pelas ruas e vielas como um vagabundo - absorvo as três definições do dicionário "errante, nómada, andante" excluindo as pejorativas - desprovido de vaidades, egos, desejos e ambições. Saboreio apenas o momento. Sinto em cada passo a calçada branca e negra, irregular como a vida, descorada e fria, a açoitar-me os pés. Como um vagabundo sem destino, sigo uma brisa de gelar o corpo que nem uns ténues e frágeis raios de sol conseguem alterar. Hoje, decidi caminhar como um sem-abrigo do mundo, sem horas, sem lugar, sem destino, ao sabor do momento, retirando prazer e felicidade de pequenos detalhes, do simples facto de poder estar aqui, de poder caminhar numa cidade repleta de História e de estórias.
Caminhar por Lisboa é sempre uma experiência extraordinária, um exercício para todos os sentidos, um gráfico para medir a nossa sensibilidade. As sombras escondidas tornam misterioso cada recanto, cada escadaria. Mesmo nas sombras existe uma beleza particular, absorvente, indiscritível. No quadrado da Trindade um cauteleiro estático de uma massa negra, sólida e gelada, vai utopicamente vendendo a sorte aos transeuntes. Como seria magnífico que se pudesse adquirir sorte aos pacotinhos, para utilizar a gosto!
Continuo a aventura citadina percorrendo uma escadaria deserta, apenas aconchegado pelos companheiros de aventura. A meio do percurso, uma imagem contrastante, branca e vermelha, arrastando-se entre detritos da noite anterior, varre sonhos das pedras gastas da calçada, indiferente aos meus cliques, um olhar alheio a tudo... Nas vicissitudes da vida ou nos pequenos prazeres da dita? Apenas posso imaginar a resposta...nunca a saberei.
Nunca, como hoje, desejei tanto ser herói de um qualquer filme de ficção científica, ter poderes especiais. Desejava a invisibilidade no meio das gentes para poder ver cada detalhe sem constrangimentos.
Encontro-me com a cidade no electricista pendurado numa escada no topo de uma rua sombria; no cartaz do restaurante - estética e estrategicamente concebido para me fazer recuar no tempo e desejar as suas delícias; no graffiti perfeito e belo na parede de um qualquer muro; na senhora de roupão branco com estrelas cor-de-rosa, despenteada, pendurada na janela, também ela uma estrela da cidade.
Chego ao fim da escadaria onde vislumbro sinais de fumo: um SOS de um carrinho de castanhas, moderno, em inox, impessoal e frio, à procura do seu progenitor, rústico, sujo, tradicional, onde, no meio de pregões, cones de papel de jornal fumegantes trocavam de mãos e quase me faziam apreciar castanhas.
Será que com toda a informação e formação actual, não somos suficientemente capazes de escolher sozinhos? Será que não podemos ter o livre arbítrio de consumir uma deliciosa, gordurosa e suculenta bifana a flutuar em óleo de um mês? Não me recordo de alguém ter morrido ao fazê-lo! Para que serve tanta informação e formação se depois alguém decide por nós?
Estamos perto do teatro D. Maria mas as pancadas de Molière que sinto não são no palco, ou melhor, são no palco da vida. A uns metros da entrada dos artistas, um sem-abrigo dorme periclitantemente num leito improvisado, despojado de tudo, entre sombras e réstias de sol, que agora já aquecem um pouco mais. Cada imagem destas é um turbilhão de sentimentos e emoções. Hoje tinha pensado caminhar por Lisboa como um sem-abrigo, tentar perceber como seria desfrutar da cidade sem condicionalismos, obrigações ou moralismos, mas, ao contrário desta alma, no final do dia posso sempre regressar ao meu conforto. A experiência nunca será idêntica! Questiono inúmeras vezes se tenho o direito de me queixar da vida. Tenho uma história longa e irregular, como a calçada portuguesa. Uma história de persistência e luta, de vitórias e derrotas. Questiono-me se ele algum dia teve oportunidade de travar essas batalhas. De que me queixo eu, que vivo confortável, rodeado de pequenos luxos?
Neste teatro da vida, todos subimos e descemos escadas e é bom lembrarmo-nos, quando estamos a subir, de cumprimentar amavelmente quem desce: um dia podemos estar a realizar o percurso inverso...
Avançando em ziguezague, vou procurando detalhes. Observo a senhora que arrasta a criança em velocidade de emergência nacional, o cão em fato domingueiro, o ciclista em equilíbrio precário digno de registo, o patrão que pendura a lista de iguarias na porta do seu restaurante, o reformado numa mesa de café escarlate, vazia, observando quem passa, as portas de um colorido desbotado suportando historicamente o peso dos anos, um pombo que guarda a sacada de uma janela em ruínas emoldurada por azulejaria portuguesa. Continuo a ser assaltado por uma dualidade de emoções. O casario velho faz parte da beleza da cidade, confere-lhe uma áurea mágica. Talvez resida aí parte do seu encanto.
Um sentimento de misto de alegria e tristeza teima em acompanhar-me. Sinto a falta de respeito que se tem por estes edifícios que fazem parte da nossa História e da nossa cidade, abandonados, decadentes, como os habitantes que ainda resistem em alguns deles. Trepo escada acima. Em sentido contrário o casario cai em cascata, colina abaixo, filtrando a luz em raios, desenhando sombras chinesas abstractas. Vou revivendo a estória destas ruas. Cruzo a casa onde segundo a tradição documental em 10 de Junho de 1580 faleceu o nosso maior poeta. Mais à frente, num outro local, o pátio onde nasceu a maior diva do fado. Tantas estórias de gente magnífica que ultrapassam os limites destas vielas e nos fazem gritar ao mundo que somos um povo orgulhoso dos nossos heróis.
Aqui e ali vamos fazendo pequenas pausas, observando e conversando com os habitantes. O homem arqueado que vagarosamente transporta encosta acima a bilha de gás às costas, o rasta simpático na janela de uma água furtada que sorri para a minha foto. Descubro, depois, que é nigeriano e que está a estudar em Portugal. A africana que espreita, procurando compreender a razão de todo aquele burburinho e que eu atrevidamente registo, o homem das obras que segura a corda de uma roldana, como se procurasse sozinho erguer toda a cidade. Fixo uma legenda pintada numa parede degradada: "aqui podia viver gente"!
Vou já descendo em direcção à praça e espreitando furtivamente pelas portas abertas. Um negro, de chapéu amarelo, com fones nos ouvidos, navega na internet no interior de um Money-Trans. O cabeleireiro africano, onde letras de estética duvidosa, brancas sobre um fundo azul céu, anunciam "Salão Edu ". Coladas aleatoriamente nas portas, fotos de modelos femininos, muito belas, com penteados de griffe, contrastam com o corte à futebolista que o barbeiro executa ao seu cliente de cor.
Regresso à praça, uma multidão de várias raças, ociosamente descansa, num torpor de fim de semana. Mais uma vez registo na memória uma frase escrita na parede: "Lisboa cidade da tolerância".
Na praça, bem no centro de Lisboa, uma igreja, sem bandos de turistas orientais ávidos de fazer uso da velocidade centrifugadora das suas máquinas digitais, convida-nos a entrar. Por educação, sou católico não praticante. Podia ser de qualquer outra religião! Em todas elas encontro ideias que me agradam. Desde que me conheço que tento retirar o melhor das coisas, a religião não é excepção. Isto para dizer que quando entro numa igreja, mais que qualquer outra coisa, aprecio a sua construção, a sua beleza elegante ou rústica, o primor dos seus acabamentos, a mão-de-obra necessária à sua execução. Imagino que tantas e tantas almas dedicaram toda a sua vida a estas construções. Quanto aos rituais em si, embora os respeite, tenho alguma dificuldade em perceber que várias pessoas entrem numa igreja, como num qualquer café, balbuciem uma ladainha como se pedissem uma água, e depois sigam apressadas o seu caminho. Para mim as igrejas apenas são interessantes vazias. Nessa solidão tornam-se num local de reflexão onde, mais do que encontros com Deus, me encontro comigo mesmo.
Esta é uma igreja diferente. Por fora nada a distingue, é mais uma Igreja barroca do século XIII de planta em cruz latina. O terramoto de 1755, quase a destruiu completamente. Depois de reconstruída sofreu um violento incêndio em 1959. Os seus altares de talha dourada quase desapareceram e abriu fendas em todas as colunas. O interior tem, no entanto, uma nuance única: manteve-se, com algumas reparações, tal como o incêndio o deixou. Aqui somos transportados para uma outra dimensão, quase fantasmagórica. A sua nave majestosa, de paredes violentas, cor de fuligem e ocre enlaivado, levam-nos ao cenário de um holocausto nuclear, para um outro tempo, para um outro mundo. As imagens religiosas salpicam, aqui e ali, este cenário, em sinal de humanização.
Saio para a rua num regresso lento. A realidade espera por mim. Um sem-abrigo, de chapéu no chão, indiferente à multidão, apoia-se numa garrafa verde que para ele contém todas as forças, todos os sonhos, todos os remédios para as mágoas e dores. Indiferentes comerciantes procuram dourar o seu negócio.
Uma pequena pausa numa banca de fruta que deleita os nossos olhos. Simpaticamente, um senhor impecável no seu avental negro, brasonado em cor dourada, prontamente nos coloca à disposição uma caixa com pequenos pimentos coloridos para preencher as nossas objectivas. Agradecemos e trocamos dois dedos de conversa. Descobrimos que os pequenos pimentos são cortados em lascas e consumidos pelos africanos, algo insensíveis ao picante. Mais a frente, um engraxador sentado na sua caixa personalizada, puxa ferozmente o lustro ao sapato do cliente. Este não acha muita graça ao facto de meia dúzia de mirones, armados de caixas mágicas, estarem ali a registá-lo para a posteridade. Talvez tenha medo de que o fisco descubra que não pede factura do serviço!
Com todas estas voltas já a barriga dá horas e numa cidade como Lisboa, decidimos que o mais tradicional seria um hambúrguer, num daqueles espaços assépticos, cumprindo todas as normas ISO 9000 e tal, aqueles onde se consegue disfarçar o sabor de um animal, triturado e comprimido, com molhos e afins. Socorroooo... Prefiro a bifana sem regulamentação, numa qualquer tasca manhosa!
Depois de saciado o estômago e recuperadas as pernas, lá vamos nós, como um bando de garotos traquinas, novamente escadas acima, procurando guardar o máximo daquilo que a nossa retina alcança. Apreciamos uma paisagem sem tempo, o casario de Lisboa, com emoções à flor da pele. Espreito, através das grades, um pátio interior onde caixas de correio, meio corroídas, tentam manter o seu estatuto social. Continuam perfeitamente alinhadas, qual exército em formação, muito embora os seus uniformes sejam agora de um colorido berrante entre o vermelho e o verde e os seus generais há muito as tenham abandonado. Mais uma vez o bairrismo tradicional vem à superfície. Uma rapariga apressa-se a dizer que posso entrar e, como um guia turístico, conduz-me pelo pátio interior. Organizadamente dispostos, tanques em cimento, signos de pobreza material, se mantém em função, num pátio decadente e opressivo mas que mantém um certo ar bucólico.
Um pouco mais a frente subindo distraidamente uma escada e contornando o casario, virando mais uma esquina, quase esbarro em mais uma alma errante desta cidade. Ele sorri, eu sorrio retribuindo o sorriso franco e, como paga, roubo-lhe a alma. Ele retribui com novo sorriso e um "obrigado". Eu balbucio qualquer coisa como "eu é que agradeço, amigo”. Em segundos conseguiu fazer-me sentir mais emoções do que em horas de uma palestra numa qualquer universidade do mundo, onde apenas se fala de estatísticas e se aflora a côdea dos problemas, sem pensar nas pessoas.
Chego ao miradouro que tem nome de poetisa. Por uns minutos paro e aprecio a beleza dos telhados de Lisboa nas suas cores pálidas e tez gasta, saboreio a sinfonia da cidade que vibra como as cordas de um alaúde. A minha caminhada aproxima-se do fim. Em mais um dos becos simpáticos da cidade, em mais uma das janelas ocupadas, senhoras donas do tempo (as que apenas contam para as estatísticas) olham os forasteiros e moradores que passam. Uma delas balbucia qualquer coisa, presumo que pouco simpática. Sorrio e provoco-a, com um sonoro “bom dia”. Diria que já contava com a minha provocação e lá fico de cabeça virada para as nuvens a ouvir a sua estória, as suas queixas, a história da sua rua.“...aqui viveu muita gente importante...”. Ela própria tem duas licenciaturas, imaginárias ou talvez não. Quem sabe? Retenho a forma como fala da solução de todos os problemas, "... se o António cá estivesse isto não era assim não!...". Sorrio, pela forma quase familiar como se refere ao responsável do Estado Novo.
A bela luz de Lisboa vai-se esvaindo. Tenho ainda tempo para entrar numa olaria onde numa roda tradicional um jovem, resistente, tenta trazer a Lisboa um pouco do seu encanto, pela beleza do trabalho artesanal. A seguir aprecio um trovador, emoldurado pelo Tejo, tocando para os turistas do miradouro. Será que as poucas moedas justificam a emoção que coloca no que toca? Uns metros mais abaixo, uma simpática senhora, na sua loja junto da Sé, vende para o mundo sardinhas de trapo e corações fofos. Aconselha-nos a aguardarmos um pouco mais para ver a luz do sol atravessar a Sé num espectáculo de fim de tarde.
O meu espectáculo de fim de tarde está reservado para onde o rio, pintado de um laranja pastoso e consistente, se deita num manto de rochas monocromáticas. Termino junto ao Tejo depois de atravessar uma das maiores praças da Europa (36.000 mt2) testemunha de muita da nossa História. No cais, adornado por duas colunas de inspiração maçónica, representando duas colunas do templo de Salomão - a sabedoria e a devoção - acabo a minha caminhada. Há coisas que no entanto não mudam: o pôr-do-sol a beijar o Tejo e o voo rasante das gaivotas. Eu, por mim, regresso mais rico por todas as sensações que vivi e pelas que consegui registar.
Uma volta por Lisboa,longe dos circuitos turisticos mas perto dos melhores sentimentos humanos