No espelho da vida desfilam todas as idades, como
numa passerelle. Sintetizando: Sempre quis ser feliz. A felicidade
sempre foi um ideal, um objectivo, um caminho que o
levaria ao bem- estar. Rebolou montanhas abaixo na perspectiva
de encontrar essa gota de chuva suspensa numa hera à sua
espera, o embrião fecundado de todos os caminhos, o ponto
onde se iniciam todas as rectas... O cálice da razão de estar ali!
Lambuzou- se em oásis humanos... Sorriua todos. Repartiu o
pão como um ourives, na esperança de saciar a sede da felicidade
e dividi- la por todos os que o mimaram de alegrias. Perseguiu
esse ideal como uma leoa corre atrás da presa para
saciar as crias. Foi feroz no propósito, violento na luta, agressivo
na vontade! Uma auréola de ternura sempre corou as atitudes;
um sorriso sempre resplandeceu dos lábios; uma doçura
sempre brotou da voz. Mesmo cansado, abatido, algumas
vezes desalentado, nunca adiou um passo, nunca colocou um
despertador, nunca se deixou ultrapassar pelo tempo. Erguia o
rosto e viesse o que viesse!
Hoje a farinha do sonho esvoaça por entre os dedos. Se
abre a mão vê, em cada linha, uma pequena ponte de madeira
que atravessa um rio de cansaço, sulcada pelos seus pés descalços.
Lembra- se de a ter construído com todas as gotas de
suor derramadas sobre a esperança. A ponte é o símbolo do
êxito. Qualquer riso, ainda que imperceptível, é lançado por
ela no espaço. Transformado em semente, vai fertilizar os vastos
trigais nas margens. As mãos que escolherem as espigas
repartirão o pão por toda a gente, como um messias. Jubilarão
todos os corações! Ainda hoje existe, sem endereço, num mapa
sem estradas...
Não conta os anos... O sangue ainda explode nas veias
e o grito é trovão! Não contabiliza os passos... Falta tanto
andar! Sempre vai encontrando um mimo aqui, outro ali... Embora
fugazes, trazem à alma a inocência de um sorriso e ajudam-
no a sulcar mais uns passos no chão espinhoso. Cada um
desses momentos é, para a alma extasiada, uma pequena ilha rodeada de palmeiras, bafejada pela tranquilidade de um sopro
de calmaria, uma aragem de mansidão.
Diante das retinas surge a extensa e lírica avenida, repleta
de sombras, medos e perfumes... De cada cipreste, de cada
nogueira, de cada loendro, eleva- se o canto místico e antigo de
Luiza Tody. O esplendor da história no vibrar das cordas vocais.
Um busto branco como a pedra, cabelo encaracolado, olhos
postos no céu. O solfejo daquela voz meio- soprano ainda timbra
nos ouvidos de Beethoven que a aplaude em nome da Europa.
Os versos são simples e parecem perguntar: “D. Carlota
Joaquina, qual o crime de uma mulher cantar em público?”
Cansado de caminhar senta- se num banco de pedra. À
frente um candeeiro esmaltado insiste iluminá- lo. Irradia da
abóbada circular de vidro uma luz baça, difusa e desfigurada,
que premeia a calçada com alguns raios. Pretende- se anónimo,
eremita, filósofo, generoso. Quer ser o grito arrancado à mordaça
antóniocasado