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A malvada da (des)culpa

 
Não me lembro de que alguma vez me tenha sentado no colo e me afagasse os cabelos, ou os seus braços me envolvessem o pescoço num gesto físico de demonstração de carinho. Mas eu sabia que me amava à sua maneira, quando, por exemplo, me sabia doente e ficava de cama. De vez em quando, ouvia-lhe os passos pela escada acima e assomava a espreitar à porta do quarto perguntando-me se estava melhor da tosse, encostando-me com ar preocupado a costa da mão à testa verificando se tinha febre, insistindo para que tomasse o xarope e os supositórios Dolviran, que me provocavam um ardor incompreensível visto serem para me fazer bem... mas nada que se comparasse às injeções aplicadas pelo alfaiate que era uma espécie de enfermeiro lá da terra - toda a gente, mais cedo ou mais tarde, viria a necessitar de injeções e quase todos os dias havia alguém a querer levar uma pica na casa do primo Brasílio. Era um ritual ao qual só os acamados se escusavam ao mandado visto ter de ser o primo Brasílio a ter de se deslocar ao leito do enfermo - e me faziam suar de terror! O meu coração começava logo a galopar assim que lhe ouvia a voz à chegada, com o estojozinho brilhante de inox debaixo do braço, que pousava com todo o cuidado em cima do naperon da mesinha de cabeceira e de onde extraía uma seringa enorme que fervia num recipiente próprio antes de lhe introduzir aquela agulha de metro cuja ponta enterrava no frasquinho sugando-lhe o líquido que em três tempos (que durava uma eternidade), entre a passagem fria do algodão com álcool e a picadela na nádega descoberta, sentia entrar-me na carne numa operação interminável.

Por outro lado, a minha irmã tinha estratégias de lhe roubar minutos de atenção, escondendo-se debaixo da mesa da cozinha assim que o ouvia começar a subir as escadas para o almoço - escondia-se sempre no mesmo sítio.
Ele, advertido pelo sinal da minha mãe que lhe dava conta da ausência da pequena, já sentado no seu lugar de sempre, entortava-se para a frente e metia a cabeça por debaixo da mesa onde encontrava uns olhinhos brilhantes de exaltação, feliz por ter sido encontrada pelo pai, mais uma vez. Saltava-lhe para o colo e punha-se a abraça-lo com força deitando por terra qualquer resquício de recusa que houvesse (e não havia) em receber aquele abraço. Riamos todos e finalmente podíamos almoçar em sossego.

Não sei se ela alguma vez o conseguiu voltar a abraçar vinte anos depois, mas a mim, o pudor estúpido impediu-me sempre de o fazer.
E tenho pena que não tivesse sido de outra forma. Mas hoje, ao lembrar-me disto, penitencio-me por nem sequer ter tentado um única vez que fosse, mas... já não posso fazer nada. Ficou a sombra medonha do remorso, que de quando em vez me assalta o pensamento.
Não quero a culpa. Ao invés dela, que me continua a querer a mim.


*... vivo na renovação dos sentidos, junto da antiguidade das lembranças, em frente das emoções...»

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cleo
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Enviado por Tópico
rosafogo
Publicado: 25/07/2012 22:59  Atualizado: 25/07/2012 23:01
Usuário desde: 28/07/2009
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Mensagens: 10805
 Re: A malvada da (des)culpa
Li com muito gosto esta prosa, e entendo perfeitamente que
esse sentimento de remorso exista em muita gente da minha geração.
porque os pais não eram dados a muitos afectos, embora gostassem dos filhos
a seu modo, penso que havia até uma certa vergonha de exteriorizar sentimentos
perante as outras pessoas.
Ao invés disto, graças a Deus a minha relação com o meu pai foi desde que me conheço
de ternura, nunca adormecia sem me despedir dele abraçando-o e chamando-o de «mê amor, mê amor» assim tal qual, hoje o recordo com muita saudade.
Fica a minha leitura em forma de saudade e aconselhamento aos que ainda o têm que o abraçem hoje ainda, não guardem para amanhã que pode vir a ser tarde.

Obrigada por esta lágrima que me fizéste soltar.

Beijo da rosafogo


Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 26/07/2012 00:35  Atualizado: 26/07/2012 00:35
Membro de honra
Usuário desde: 25/01/2009
Localidade: Pouso Alegre - MG
Mensagens: 18598
 Re: A malvada da (des)culpa
Ah, tanta coisa queria não ter perdido!
Só por um sorriso, um instante que seja.
Mas hoje tudo vira o barulho daquele que
não falamos. Obrigada, Cleo.
Esse seu avatar nos sorri por todos os lados. bjs


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 26/07/2012 02:35  Atualizado: 26/07/2012 02:35
 Re: A malvada da (des)culpa
Li com muito interesse este mosaico nostálgico do seu passado. Parabéns, Cleo.


Enviado por Tópico
luciusantonius
Publicado: 26/07/2012 16:09  Atualizado: 26/07/2012 16:09
Colaborador
Usuário desde: 01/09/2008
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 Re: A malvada da (des)culpa
Sensibilizou-me francamente o seu texto por me trazer ao de cima um certo mal estar que procurarei exorcizar neste meu comentário.
Também em mim existe o pecado da exagerada contenção na manifestação afectiva. Sinto-o sobretudo em relação a um ente querido, «picando-me» o remorso de o não ter abraçado com a força das circunstâncias, ainda que algo de muito profundo em mim me tranquilize.
Um abraço
Lucius Antonius

Enviado por Tópico
Nanda
Publicado: 27/07/2012 22:40  Atualizado: 27/07/2012 22:40
Membro de honra
Usuário desde: 14/08/2007
Localidade: Setúbal
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 Re: A malvada da (des)culpa
Cleo,
Senti-me dentro da tua própria crónica, um sentimento transversal a tantos filhos de pais que não souberam, por questões culturais e de formação rígida, transmitir o imenso amor pelos seus filhos.
Beijinho
Nanda

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 01/08/2012 10:43  Atualizado: 01/08/2012 10:43
 Re: A malvada da (des)culpa
Estava com saudade...vim te visitar e saio emocionado....escreveste algo de imensa importância com uma leveza contagiante. Tocou-me sem dúvida....obrigado por dividir.Beijo em admiração.