Prosas Poéticas : 

... anfíbia à solta

 
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Os olhos nítidos das cigarras
observam
os membros minguados das gruas e dos guindastes
que já não transportam a areia desfalecida da manhã do rio.

Revejo um a um todos os choupos bafientos e nus. Norteio-me p’los salgueiros debruçados p’lo tórax no espelho opaco das águas. Pelas pedras roladas de mil jornadas.
Viajo fragatas jazidas em busca de moliceiros, rumo ao norte, lá mais acima, a um espaço pantanoso, poluído e igualmente já sem vida.
Desprendo-me da pele, da veste rouca, baloiço-me em ondas vagas, sou cobra, anfíbia à solta, envolta nos sargaços estrelados com que moldaste a frio os teus e os meus passos, na beira-mar do enredo duma vida.

Cedidos dos corpos, os gestos profanam-se maçudos e indigestos, em ausências de tabernas, ao vício pasmaceado do beber de pé, de goela aberta, do primeiro até ao último trago.
Na deriva, fulgentes, os olhos das cigarras retalham o verde das azeitonas outonais, mascam fomes de papoilas rubras em bocas ainda mergulhadas nos sabores melífluos das últimas uvas. Videiras despidas, retortas, escorrem na terra a seiva retida.

O lugarejo da beira Tejo vareja-se e alvora na apanha residual dos últimos bagos.
Somam-se nos carreiros histórias antigas, intrigas torneadas à bancada das horas, estancadas por garrotes e torniquetes, vontades esfomeadas de descer ao rio, de descer subindo o rio, em polainas de pernas altas, maquiavélicas e plásticas, dúcteis e sombrias, no esguio do ensejo de tomar o boi de frente, na plasticidade indecente de afagar arpoando a própria mente em dessalga e desalinho. De ser cálice sendo, ao mesmo tempo, o próprio vinho. No contraditório …

A lua engorda o horizonte. O Ribatejo afoga-se nos odores de casulos marsupiais, nas chinelas clandestinas dos avieiros e nos trocadilhos juncosos das varinas. Ou no seu oposto …
No infinito horizonte passarinhos de seda presa não são mais que ventrículos em busca de acamamento. De acasalamento urgente na fímbria parcelar de ser verdade.

Esgueiro-me à colina do vento e nada vejo que não seja, pasto adentro, o meu cavalo alazão. Alisa o chão seco do terrado na espoliação do retorno a casa, onde o moço de estrebaria o aguarda sempre paciente e, sem que deseje ou queira, o liberta, no brunir do pelo, dos carrapatos e dos percevejos.

Bucólica a noite abre a boca ao bocejo lento, em devir. Ilumina as campinas nas lamparinas de azeite d’outrora conquanto as ninfas do Tejo se despem desposadas ao som de um realejo antigo.

Recolho as teclas, jejuo a fome dos alfabetos. Os olhos nítidos das cigarras recolhem-se igualmente em redes, nos umbrais entreabertos das teias dos insectos e, dos montes, descem agora para o meu colo pássaros incertos.

(Vala do Carregado, Nov. 2007)


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Mel de Carvalho
 
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Enviado por Tópico
Tânia Mara Camargo
Publicado: 19/11/2007 20:23  Atualizado: 19/11/2007 20:23
Colaborador
Usuário desde: 11/09/2007
Localidade:
Mensagens: 4246
 Re: ... anfíbia à solta
Mel, no luso estou aprendendo palavras diferentes,
muito me encanta uma prosa como esta, aliás tudo o que tenho lido é altissíma qualidade, és uma doce
poetisa. Beijos!


Enviado por Tópico
MariaSousa
Publicado: 19/11/2007 22:13  Atualizado: 19/11/2007 22:13
Membro de honra
Usuário desde: 03/03/2007
Localidade: Lisboa
Mensagens: 4047
 Re: ... anfíbia à solta
Palavras para quê??? é a Mel a escrever...

Bjs


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 19/11/2007 22:42  Atualizado: 19/11/2007 22:43
 Re: ... anfíbia à solta
Deus me livre! primeira coisa que me apetece dizer.
É expressão minhota.
Serve para afastar desgraça, ou para manifestar surpresa, espanto, admiração, comoção.
Emprego-a no segundo dos sentidos.
No segundo mágico em que quando acabamos de ler, dizemos:
-Deus me livre!
Tem tudo o teu texto. Qualidade narrativa, que nos leva numa viagem por um lugar, uma região, que o leitor conhece de memória, mesmo que lá nunca tenha ido.
Qualidade no desenho das paisagens desse dia, evoluindo o texto em crescendo, da manhã à noite, semeando em quem lê, todos os cheiros e ventos que a tua prosa traz, vinda da poesia das coisas, de todas as coisas.
A tua alma de mulher é do tamanho da escritora.
Grande, enorme.
Estou barado!
É outra expressão daqui e quer dizer isso mesmo:
-Valha-me Deus.