No dia seguinte acordei cedíssimo. O rebuliço na rua impedia-me de dormir mais. O roncar constante dos motores dos automóveis em fúria de cá para lá e de lá para cá num vaivém interminável, contrastava com o som de um único motor que costumava levar-nos (a mim e à minha irmã) à janela, por mor de averiguar de quem seria que àquela hora (fosse ela a hora que fosse, qualquer uma servia desde que viesse cortar o silêncio sepulcral da rua). Se fosse o padeiro ou o sardinheiro, apitariam logo na curva das aveias anunciando a sua chegada e dando tempo às mulheres que estivessem nas redondezas ou no quintal dos mimos, de irem a casa numa pressa para mor de ir buscar o saco de plástico e o porta-moedas. De modo que esses dois ficavam logo postos de parte. Seriam todos menos esses dois, visto que esses apitavam sempre quando ainda vinham lá ao longe. Se fosse natal ou Agosto, também calhava ser o meu padrinho, a minha madrinha e os filhos, que chegavam de Lisboa e nos alvoraçavam de uma incompreensível euforia como se fossem da nossa própria família e viessem para a nossa casa... Mas não. Não era para a nossa que vinham. Era para a do lado, ali mesmo encostadinha à nossa só que muito maior e mais bonita. Outras vezes eram os do polícia, também nossos vizinhos ali no oiteiro, só que do outro lado da rua, junto à torre do relógio que um dia resolveram deitar abaixo de todo por causa de umas pedras que começaram a cair lá de cima e que eram capazes de acertar em alguém que por ali passasse. Mas dizia eu ali em cima, que acordei cedo naquela manhã por causa do rebuliço da rua. Carros, buzinas, falaças, passos apressados na calçada e pregões que eu nunca tinha ouvido ao vivo, só na voz do meu pai, quando, em conversa com os da terra que por ali paravam à porta da oficina, a caminho de qualquer lado e entravam para trocar dois dedos de conversa; os resolvia imitar trazendo o Bairro da Madragoa inteirinho para dentro da sua oficina, visto que os demais logo lhe respondiam com outros do mesmo género. De maneira que aquilo mais parecia um Páteo de Alfama onde a conversa animada lhes parecia trazer uma inesperada felicidade. Era uma coisa que se via no brilho dos olhos e no querer dizer apressado de cada um. Levantei-me num estalar de mola e chamei pelo meu pai que a essa hora ainda se passeava nos sonhos. Comemos uma bucha à pressa e lá seguimos para a rua a caminho do tal oftalmologista do hospital dos Capuchos que nos haviam recomendado.