Contos : 

Reveillon

 


O maçarico descascava e cortava a chapa de aço ; um tosco retângulo tomava forma rente ao piso brilhante , recendendo a desinfetante barato e pano de chão ; Eufrásio dirigia a chama ; o medo e a máscara protetora á frente do rosto ,guardando-o das fagulhas intermitentes , ajoelhado sobre o piso polido e regular .

Quinze minutos sem romper uma chapa que não resistiria a dez : algo errado ; uma olhada em torno , flertou com a penumbra e seus habitantes : móveis de aço com revestimento imitando madeira , ar parado , em recesso letárgico . Na parede, a foto oficial do poderoso de plantão , velhas e feias cadeiras ; numa delas,um paletó branco com uma gravata preta a guarnecer um ombro , calendários de mesa , fotos familiares emolduradas de algumas pessoas parecendo ridiculamente felizes , veladas pelo silencio obsequioso e ladeando computadores desligados , no sono de pálpebras escurecidas .

O cilindro de acetileno, mais leve ,contrariava as expectativas , começando a dar sinais de cansaço e esgotamento . Agora , pegar o outro cilindro amarrado no bagageiro da bicicleta , escondida num canteiro, lá na rua. Praguejou , emputeceu-se em surdina na fúria seca e estéril .A noite , em primeira infância, repleta de possibilidades , deslizava sob os ponteiros dos relógios de parede e de pulso,na marcação do tempo desperdiçado .

No terraço, o vigia idoso sentava, escorando encosto e pernas traseiras da cadeira contra a parede , arriava a aba do quepe sobre os olhos , retomando a longa peregrinação de trinta e quatro anos , em busca da grande milhar jamais sonhado do jogo do bicho , de animais fugidios tal a matéria que tece os sonhos , sempre de laços soltos , a desmanchar-se e refazer-se, até a consciência recoser tudo . Na mesinha ao lado , caderneta e esferográfica já destampada ,aguardando o palpite feliz.

Um muro pálido e gretado, ainda não era obstáculo para Eufrásio e o sonho da grana a vinte metros de distancia .Trocou de cilindro, testou a chama e prosseguiu a faina desbastante no metal que não se entregava.

Outra olhada para os relógios de parede e de pulso . Dalí há vinte minutos , o foguetório de ano novo e a liberdade de trabalhar com o gás mais aberto . Agora , ao segundo tempo do jogo de arromba ; a um palmo , alegria e dinheiro , a fuga da vida merduncha e abespinhante , uma respirada acima do sufoco .

Da sacola, tirou a garrafa de cachaça ; na boca ressequida pelo medo, um gole decidido e brusco.Esperaria o início do foguetório. Roma não se fez num dia , aquilo tudo lhe custara um mês de trampo ; avaro na confiança ,ninguém além dele mesmo e o escapulário da Senhora da Conceição , que beijava tremulo , antevendo a misericórdia colossal da Protetora, compreensiva da aflição com que esperneava para sair do buraco , aquele dinheiro a redimi– lo da pobreza e das desgraças menores á reboque ; imagina , até cornudo se tornara , pela mocréia imprecadora ; tratando - o de preguiçoso e cachaceiro até aboletar-se no caminhão de Liberato, o mineiro branquela , macio, risonho e de língua enrolada , á essa altura,nos quintos dos infernos, de brasilsão afora , traçando- a feito galo , tal foram flagrados na boléia do caminhão , nus e felizes ; velhos ódios , mortos de inanição pelo tempo .
Sequer um motel ; sem – cerimônia total , chifrado á frio .Sem muita convicção , ainda bateu mão á faca , mas o peso da idade colocou perguntas de difícil resposta ; a primeira, se valeria a pena o furdunço pensado : ter de esconder-se da possível vingança de gente que sequer conhecia , vinda não sei de onde ; segundo , mulher galheira hoje, tava mais que bem amparada ; homem virou mercadoria sem valor e sem regateio ; preso , teria de virar-se com os advogados oferecidos pelo governo , logo ele , que nunca acreditara em nada que não lhe saísse suado de dentro do bolso , até agora , nesses sessenta mal vividos .

Mais uma lapada ; a cana desceu – lhe incandescente , explodindo no estomago em fúria vulcânica ; subindo, atiçou-lhe o fogo meio morto do cérebro , que começaria a ratear um dia e não mais pegaria nem no tranco da pinga. Lembrou do fim do velho pai e benzeu-se . Outro olhar ansioso para os relógios , agachou – se ; acocorado trabalharia mais relaxado . Pior a emenda que o soneto : do cilindro reserva , um chiar fino e humilhante .Mesmo testado e recarregado ,a válvula liberava aqui e ali , um débil e azulado lampejo de angústia sussurrada e intermitente .

Meia – noite , os fogos pintavam o céu escuro , agora rendilhado multicor na janela e os sibilos seguidos de explosão, abafando os gritos da multidão ao longe . Válvula aberta ao máximo, o lampejo engrossou um pouco , mas a área de luz ao seu redor , foi aumentando e isso poderia ser muito ruim , chamando a atenção do velhote , caso despertasse .Cogitara uma parceria propinosa com o vigia ; mas percebera apenas orgulho babaca de passar trinta e quatro anos e seis meses , dormindo numa cadeira de repartição pública, confessado enquanto ele fingia aplicação na lanternagem daquele passat em petição de miséria , na oficina do Matuto.A cada um , conforme a sua imbecilidade, filosofou entre dentes.

O mesmo sujeito , de graça e ao acaso, falou do caixa automático dentro daquele prédio antigo e maltratado, a dois quarteirões,na hora de pagar o conserto , com um talão de cheques zerado . Da idéia ao plano , apenas meia hora a matutar sobre a vida . Na volta do imbecil , embolsou a mixaria em espécie, decidindo onde e quando , puxaria o pé da merda . E tiraria de vez , claro .

A alma do acetileno minguava , a chama sequer expandia em abertura máxima .
Retornara ao filete de luz , quase chama de isqueiro . O desespero, saía do seu canto escuro infiltrando – lhe a mente ; pensava em ziguezague, uma estranha fé lhe invadia a natureza , empilhando - se por cima de tudo : ir em frente , o mundo muito lhe devia ,era credor de muita coisa , vivia uma vida cada vez mais aparentada com a morte , ir em frente , de qualquer jeito . O tempo avançou e estancou em parada brusca , no relógio de parede ; falta de pilha ou cansaço , palavra chave daquele universo estagnado e mesmo assim , ridiculamente bem posto . O relógio de pulso continuava ; sincronia perfeita com uma angústia suada e tresandando á cachaça .

O salão onde ficava o caixa , de alto pé direito, tinha recessos agora subitamente iluminados e logo escurecidos pelo foguetório ; via em relances os terminais de consulta desligados , tal animais postos em sossego pela escuridão , vigiando-o de suas baias.
No relógio de pulso, meia – noite e quarenta . O foguetório , a essa altura morto e enterrado, deu lugar á boa e velha lua que não mais lhe pacificava a natureza agitada e embotada de aguardente . Agora , restava arrancar a chapa no bico da talhadeira.
A lâmina avançava e recuava ; uma obsessão em aço . Retirou da sacola a garrafa do conhaque reservado ao descanso . Um gole do tamanho da angústia , da frustração , do medo do fracasso e do medo de ter medo. A mente girava , o corpo acompanhando , ensaio de cambalhota sobre o abismo .

Adormeceu . Um bico de maçarico frio e uma garrafa de conhaque, vigiavam – lhe o sono profundo e tranqüilo. Ao amanhecer , preso , sem oferecer resistência , por dez policiais portando fuzis e colete á prova de balas . Na saída do prédio , a alma vazando pelos olhos, na dor de cabeça do ressacante fracasso ; chutou nos testículos um fotógrafo que lhe disparou um flash quase á queima – roupa , levando o primeiro empurrão do tira parrudo e sisudo. Reviravam-se a alma e o estomago dolorido e faminto .Entrou no camburão algemado, na dignidade ainda ébria e empertigada .


andrealbuquerque

 
Autor
andrealbuquerque
 
Texto
Data
Leituras
1395
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
0 pontos
0
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.