Crónicas : 

UM LAGARTO NO MEU JARDIM

 
Era inverno. Nesses meses de junho e julho , quando o frio deixava tudo congelado ao amanhecer, a gente gostava de espiar os lagartos que procuravam o sol para fugir aos úmidos esconderijos sob a velha casa. Com os braços por sobre os batentes da janela, apoiados nos cotovelos, os pés suspensos, tão alto para os nossos pequenos corpos, o queixo colado à madeira, tentávamos manter o equilíbrio e ficar na mais completa imobilidade. Aqueles meios dias, quando o sol, quentura gostosa,dava uma trégua pro frio da manhã, ressurgem em quadros iluminados onde ainda sinto a aspereza da velha madeira machucando minha pele. Primeiro a espera, silêncios quase sufocantes, a gente mal respirava... E então o preto e lustroso focinho do réptil, com suas marcas de escamas iniciava o espetáculo de todo dia. Uma língua se movendo rápida, qual serpente e finalmente, após longo tempo surge a cabeça triangular, cinzenta, os olhos espreitando cuidadosos. Aí a gente começava a respirar mais calmamente, totalmente concentrados . Era a hora da cena esperada... Logo o corpo aparecia inteiro, ficando em seguida numa imobilidade que eu diria preguiçosa, não fosse a aparência daquele animal um tanto rígida, enclausurado em sua carapaça de outras eras. E assim permanecia por longo tempo em que nos fartávamos de admirar aquele estranho ser, arisco, e que algumas vezes arriscava-se a sair em pleno dia, para um provável passeio de quem busca alimento. Houve um dia em que eu corri e fiquei no caminho dele que voltava pro esconderijo. Aí então, ergueu-se nas patas dianteiras e me enfrentou com tal fúria que me fui em carreira para dentro de casa.
Tenho pensado muito em como gostaria de poder apreciar novamente este animal esquisito, discreto, misterioso. Seria perfeito como animal de estimação. Eu nunca gostei dos cachorros do meu avô, aqueles guaipecas que viviam pulando pra cima de mim, e dos quais eu tinha muito medo. ELes não eram bichos de estimação, viviam pelo quintal e serviam para afastar possíveis visitantes indesejados eu suponho. Ou eram simplemente parte de um mundo de outros tempos, uma espécie de adereço ou peça de um cenário ao gosto daqueles tempos. Dos gatos também não gostava, apesar da casa sempre ter uma meia dúzia deles. Eles me pareciam misteriosos e e eu temia que me mordessem à noite quando estivesse dormindo. Não sei de onde tirei tal suposição, mas creio que as pessoas tinham uma visão muito diferente dos bichos domésticos, pelo menos na minha casa era assim. Dessa forma, me apaixonei pelos lagartos. ELes surgiam como seres à parte, não estavam sujeitos às "leis" da casa, viviam sua vida a seu modo, tinham uma independência que me fascinava. E seus mistérios naqueles movimentos silenciosos, naquela aparência diferenciada de réptil, me fizeram amá-los cada vez mais. Entretanto eu cresci, a casa branca ficou pra trás, com suas amplas janelas na fachada,duas de cada lado da enorme porta, cuja madeira tinha entalhes em forma de quadrados dentro dos quais um losango se sobressaía em baixo relevo. Muita coisa ficou pra trás com os lagartos. Mas minha estranha ligação com a natureza intocada ainda persiste. Toda vez em que passo diante de um terreno isolado entre duas casas luxuosas, na parte alta da minha cidade, um espaço enorme repleto de verde onde provavelmente nada foi cortado há muito tempo, fico a olhar fascinada, apóio os antebraços no muro baixo e fico a respirar aqueles ares misteirosos, onde há árvores muito antigas, uma vegetação que a mão humana deixou compor aquela paisagem dificilmente encontrada ainda numa região tomada de casas há muito tempo. E aí surge uma estranha vontade de entrar por ali, onde a vida parece fervilhar e onde seguramente encontraria aqueles caminhos das histórias que li na minha infância, caminhos subindo por árvores, criaturas não mais possíveis neste nosso mundinho insípido onde se vê um arremedo de vida vindo pela tela da TV, um espetáculo grotesco que nós humanos construímos e que muita gente chama orgulhosamente de progresso.
Com a lembrança dos meus lagartos, veio também essa reflexão sobre a vida à que estamos sendo condenados, sobre suas flores artificiais com que equivocadamente as pessoas estão pensando trazer alguma vida aos ambientes, sobre os quilos de coisas inúteis que são compradas diariamente pra em breve virar lixo danoso.
E ainda sonho com os meus lagartos. Num terreno como aquele, lá entre as duas casas, e eu nem morrendo, simplesmente me transformando em qualquer planta ao saltar aquele murinho baixo e nunca mais voltar a este mundo...

 
Autor
tania orsi vargas
 
Texto
Data
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1976
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