Olho-te o corpo. Quanto mais te vejo, menos te quero descobrir.
Procuro-te no teu vulto. Se não fosse esta luz irreal, eu chamaria o teu nome à distância.
Não me reconheço nessa folha de papel cheia de tinta que espero que não seque.
Não me reconheço nessa sala que redecoraste. Nela vejo pedaços espalhados pelo chão de um puzzle que um dia pendurei na parede em frente à cama, numa moldura.
Vasculho e perco-me no pensamento de cada carta que escreveste no infinito e que não pareço encontrar entre as peças desenhadas em recortes.
Escreveste, escreveste-nos na Imortalidade.
Que imagem é esta agora? Diz-me que imagem viste em ti. E nesta imagem disfigurada na tela que pintaste, encontro-te os olhos.
Fixo-os.
Deixa-te estar à minha frente, em silêncio. Respira.
Respira só mais uma vez.
Encontro-te na rua e entre a gabardina preta que deixas a cobrir-te o corpo, só os teus olhos brilham, entre um rosto apático, desconhecido e escondido por entre uma barba por fazer.
Como podes tu teres deixado tudo perder-se quando o teu olhar se equivale a mil e uma luzes de uma cidade acordada?
Não percebo como foste, quando te deixaste ficar.
No escuro, saberias ao mesmo - à verdade, a doce, a tentação, a eternidade de vaga paixão.
Debaixo de lâmpadas fundidas ainda saberia cada canto da tua pele, o cheiro do teu cabelo, a textura das tuas mãos e os traços do teu rosto.
Incidido pelos raios, temo que esqueces que um dia me abraçaste e que cantaste para mim.
Lembras-te de quando me sorrias nas noites que pareciam nunca envelhecer, de quando vivias por mim e eu te deixava tomares-me o corpo, a alma e os sonhos?
Aqui estamos nós.
Deita-te na minha cama e deixa-te iluminar pela luz que passa pelas fendas dos estores. Enrola-te nos meus lençóis, estende-te no branco.
Olho-te na distância, a mais um canto completante do quarto escuro e silencioso.
Oiço a tua respiração entre cada pedaço de silêncio e observo o teu corpo mover-se ao som dela, que ser torna quente e pesada.
Contrais cada músculo, de olhos fechados. Pensei que estarias a sonhar.
O que estarias a sonhar? Sobre aquela cidade, num novo mundo? Em mim?
Respiras e eu continuo sentada, encostada à parede e de joelhos contra o peito para aparar o bater do meu coração.
Páras. Respiras agora mais calmamente.
O teu corpo encontra-se iluminado pela luz azulada da lua que te beija como eu desejaria.
Cada traço do teu vulto está preenchido pela sombra e a luz, que lutam por te tomarem.
Observo-te.
Estás estendido, assim como os teus braços e as tuas mãos que estão viradas para o tecto.
As tuas pernas parecem longas, deitando-se misticamente sobre a cama, enrolando-se com os lençóis de seda branca.
Abres os olhos e sinto-me a aparecer, a focar-me, a materializar-me.
E ainda no escuro, consigo ver-te os olhos amendoados a dirigirem-se na minha direcção, abrindo-se como se em camêra lenta.
Fixas-me e não consigo tirar os olhos sobre o teu rosto. Os teus cabelos parecem terem dançando exaustivamente e folgosamente e agora prolongam-se na almofada, sem saberem para que lado se virarem.
Não me pareces assustado. Aliviado, talvez. Feliz?
Ainda me reconhecesses?
Olhas-me como se ainda me conhecesses e não fosse preciso dizer.
Ainda me chamarias o nome, se te pedisse?
Olhas-me. Olho-te. Fixamo-nos. E entre a tua alma procuro o que não quis deixar de encontrar.
Sim, reconhecesses-me como se nunca tivesses ido, como se ainda ontem tivessemos adormecido nos braços um do outro.
Há quanto tempo que não me olhavas assim! Como se soubesses o que me vai na mente, como se nunca me tivesses deixado.
"Foi bom?". Quero perguntar-te. "Porquê?", talvez também calhasse bem.
Perdão, senti-te dizer com o olhar.
Ficamos então na distância, a fixarmo-nos como se fosse uma daquelas noites que deveriam permanecer na eternidade, que sempre foram nossas e por momentos pareceram questionadas.
É verdade, somos o passado um do outro. Escritos na Infinito de cada um.
Foste o meu tudo, quando eu não era nada. Fui o teu sonho, quando a luz não te alcançava.
Éramos só nós e só nós nos parecia bastar.
Diz-me, isso não te chegou quando me decidiste abandonar, à procura de um novo mundo, de um sonho que pensavas alto?
Cansaste-te de mim? Não fui suficiente, quando querias mais?
Conta-me. O sol é mais brilhante lá? As ruas são orientadoras? Como viste o meu rosto quando não o possuias entre as mãos? Mantinhas-o na mente, num pensamento exaustivo de saudade?
Conta-me. Diz-me se valeu a pena.
Diz-me se fomos uma história de amor real ou se não passámos de duas personagens sem papel onde serem escritas, que acabaram por desvanecer com o tempo quando o Esquecimento chegou e tomou o seu lugar na sala de cinema.
Olhas-me da cama, ainda estendido, tão docemente. Sempre nos olhámos assim. E a certa altura, não te foi suficiente.
Não sei se querias algo mais comigo ao teu lado, ou se eu não te bastei simplesmente.
Sempre fomos o errado do certo.
Foste, deixei-te ir.
Não te prendi, mas também não te esqueci.
Enquanto sonhavas longe de mim, desenhei-te o corpo numa tela gigante e preguei-a por cima do meu espelho.
Não queria ver o reflexo de quem deixaste para trás, de quem não te chegou, mas sim de quem não poderias deixar de ser.
Tantas perguntas me vagueiam na cabeça enquanto me beijas entre o silêncio.
Amaste-me durante o caminho ou rasgaste a minha fotografia e deixaste cada pedaço voar ao som do vento?
Olhas-me e sinto quem foste, quem te fugiu durante este tempo ausente.
Voltaste. Acordaste.
Avanço sobre o pavimento, sobre as palmas das minhas mãos e sobre os joelhos.
Avanço até sentir a tua respiração dançar com a minha de modo que os teus olhos fixam os meus, de tão perto.
Estendi uma mão no ar para te tocar na pele, para sentir que és real. Estendo-a lentamente, com medo que te esfumes ao toque.
Sinto-te finalmente quente, sóbrio.
Nos teus olhos sinto finalmente o amor ao qual escrevi cartas de adeus.
-Devias ter feito as malas e vindo comigo. Levar-te-ia comigo ao topo do sonho...
Fomos uma fita de filme deixada em stand-by para que pudesses sonhar e experimentar, ver o mundo "lá fora".
-Ao topo? Mas tu caíste. E esse topo de montanha não me trazia ar puro, sufocava-me.
Nunca poderia ter feito as malas com mesmas roupas que tu, quando as suas cores divergiam. O nosso destino não era o mesmo, meu amor.
Envolveste o meu corpo com os teus braços e pude finalmente chamar-te o nome, ver em ti o nome que amei.
-Não deixes ir. - disse, enquanto os teus lábios corriam na direcção dos meus.
Após o silêncio e o escuro, seremos nós de novo uma história de amor, desta vez num livro de folhas que não caem ao toque?
Diz-me.
Canta-me.
Lau'Ra