Contos : 

O farol

 
O FAROL


O velho Gaspar era o sujeito mais solitário do mundo , disso eu não tinha a menor dúvida . E o farol: convento e bordel da alma do cara. Viúvo aos sessenta anos, os filhos em debandada geral : aposentado, grana curta , reduzido a pentelhação obrigatória de fim de semana . E percebeu isso , percebeu sim . Surgiu faroleiro, ninguém sabe como nem por obra de que ou de quem ; somente porque . Ei- lo , visto meio de lado .

Procurei e nunca encontrei quem tivesse feito concurso para faroleiro ; mesmo na capitania , nunca reparei nisso . Faróis são feito elefantes, grandes e em extinção . Vi na TV , outro dia, um farol removido sobre trilhos de sua posição original , num país da Europa ; bizarro demais, o troço andou uns cem metros em cima de uma parafernália de eixos , molas, macacos hidráulicos, o escambau . Atingida a distancia segura da falésia, (é, ele estava quase despencando lá de cima ) foi reinstalado - espero que tenha sido assim mesmo. Então, farol é um troço cheio de nove horas , não é mesmo ?

Imagino que viagens o Gaspar fez de seu farol , olhando aquele mundo sempre velho e sempre diferente , as passagens dos navios ; com o tempo talvez fizesse algum tipo de amizade com as embarcações ;com as tripulações , duvido , mesmo se pudesse . Prezava muito sua solidão. Não parecia esperar nada do mundo nem de ninguém . Dizia que seus salários se escondiam no fundo das gavetas, para não ser vistos . Bobagem . Que necessidades teria ele ? Vez por outra recebia uma inspeção da capitania dos portos e os caras nunca reclamaram lhufas de nada : tudo certo, limpo, espanado , arrumado , nenhum barco perdido ou á deriva na área do coroa . E tinha sorte.

Ele devia saber mesmo das coisas, ter aquela inteligência alimentada pelo lado animal e peixe , que vai assumindo a pessoa que mergulha inteira naquilo tudo .E ele mergulhou , ah , se mergulhou ! A essa altura vocês devem estar se perguntando quem sou eu, deitando toda essa falação sobre Gaspar e o farol da Prainha . Chamem – me Ubiratan,


do jeito daquele cara da baleia branca, que também pedia chamem-me ,mesmo nessa história mais simplesinha ,mais pra golfinho que baleia . Uma vez por mês eu levava suprimentos para o farol e para o velho . Papeávamos um bocado , conferíamos o material enviado e partilhávamos uma cachaça do Rio Grande do Norte, que sabe Deus como ia parar ali , naquele fim de mundo , tão gostosa que imaginei-a um grande vinho que tivesse decaído, feito anjo , reencarnando ou reliquidificando (pouco importa) feito cachaça ; quando falei isso pra ele, o velhote riu um riso amarelo de nicotina e alcatrão , combinando com o amarelo dos dedos e disse que vinho era vinho e cachaça era cachaça e que um troço chamado de metempsicose não se aplicava ás bebidas , que tinham um espírito próprio .

Perguntei- lhe se já fora psiquiatra , ele riu de novo , um riso de enfisema e engraçado ao mesmo tempo, pois parecia sair da barriga dele , feito um boneco de borracha , quando você fura ele e fica apertando , sabe ? Não me diga que nunca teve um brinquedo de borracha , que eu digo que você não vale o que o gato enterra e que não teve infância ou qualquer coisa que lembre que você passou pela infância e não viu. Entre uma tossida e outra, zoou com minha cara , dizendo que nossa conversa , tava parecendo um diálogo dos irmãos Marx : gente da qual nunca ouvi falar ; já me bastava o cara barbudo que escreveu a bíblia comunista .

Aquela história toda de metempsicose era meio esquisita ; talvez a solidão tivesse aloprado Gaspar ; mas não parecia , falou-me que metempsicose não tinha nada a ver com loucura e sim com a transmigração da alma (outro calo no meu cérebro) .. olhei pra cara dele ,enrugada, engelhada num engelhamento bonito , que passava uma moral estranha para as pessoas ,quero dizer, uma moral meio mortal , feito a dos bruxos, mas Gaspar era só um faroleiro que o GPS estava quase pra aposentar. Virou outro copinho daquela aguardente e ficou a olhar pro horizonte , sem barcos ou navios , só água e algumas gaivotas . A nicotina brilhante nas unhas fazia-o parecer nascido daquele jeito, com aquelas unhas amarelo – verniz . Falei pra ele e ele riu , agora só da boca pra fora , um riso simples , raso.Parecia vestir a mesma roupa todos os dias ou melhor, não sei se ele vestia aquele jeans e aquela camisa de gola rolê que lembrava os cantores da jovem guarda - sacumequié : velhas tardes de domingo, etecetera ,etecetera , apenas


para receber os suprimentos ; espécie de traje alinhado ,sei lá.Uma vez , tiramos uma foto juntos , com o mirante do farol ao fundo e dei pra ele , que colou na porta da geladeira, onde guardava a cachaça . Desconfio que os cigarros eram seu referencial interno de tempo ; quase sempre meia hora entre um e outro; não usava relógio além daquele do farol .E aquela cicatriz no peito , que ele atribuía a uma facada ,rindo e olhando minha cara incrédula ; sentia - me incapaz de imaginar-lo esfaqueado , simplesmente por falta de alguém suficientemente louco ou blasé para fazê-lo .Isso , na única ocasião em que o ouvi queixar-se do calor e despir a camisa , ali na Prainha .

Os olhos azuis do cara ás vezes mudavam de cor quando ele descrevia as coisas que já tinham pintado na sua área, a maioria bobagens , golfinhos mortos que encalharam nos escolhos ou de quando um barco vazio espatifou- se contra as pedras do seu pequeno reino.Imagino zilhões de neurônios zumbindo na imaginação dele e coisa e tal .Raro o amor da solidão pelo solitário, pensei .O sujeito é meio que escolhido por ela , num jogo complicado de afinidades e desafinidades .Ele nunca falava da família ; o que eu sabia , era pelo pessoal de terra , da capitania , que tinha a ficha dele e parecia aproveitar a chance de ter o que seria um tipo doido manso,inteligente, que dava conta do recado , vivendo a vida sobre um farol de escolhos, escutando o resto da vida o barulho do mar e limpando cocô de gaivota das redondezas e jogando no mar , como se alimentasse aquela criatura líquida que um dia abandonaria antes que o mar o percebesse já distante e solitário de outro jeito, de outra forma e com sede de outro lugar , não mais farol .

Outro dia, convidou-me a entrar no seu quarto durante uma conversa sobre mapas ; meu Deus : uma figura enorme e redonda na parede , segundo ele , uma mandala ; uma porrada de livros antigos, muito manuseados, pareciam coisa comprada em sebo chinfrim, dezenas de reproduções de antiqüíssimas cartas de navegação e mapas, muitos mapas pelas paredes , uma incrível carta de navegação atribuída a Marco Pólo ; mostrou – me o Diário de Viagem de um Filósofo , de um tal Conde Von Keyserling , do qual nunca ouvi falar ( ia dizer – lhe isso , mas lembrei que nunca fui muito bom com livros nem eles comigo) , afirmando que dar a volta ao mundo era a melhor forma de conhecer-se a si mesmo. Gaspar tinha o corpo no mar e a cabeça nas nuvens , lendo



aquelas coisas , ali naquela solidão azul , falando da necessidade do homem de se escutar, de resgatar o que tinha dissipado do Eu ao longo do caminho da vida . Tempo para ouvir a si mesmo e para ouvir o mundo .Gaspar lembrava alguém a quem o mundo devia muita coisa , muita alegria , muita tristeza ,muita paz ,muito pesar ,tudo zerado na cinza do dia a dia ; o homem sem cor que ao perceber a falta de cor , resolveu ficar sozinho para absorver o mundo e absorver-se nele . Passaram – se anos, ficamos amigos, na medida em que era possível alguém sentir – se amigo de figura tão estranha e admirável.

Lembro de sua despedida , seu olhar líquido , o sorriso benfazejo , mochila ás costas , entrou na minha sala e fez um arremedo engraçado de continência , levando dois dedos á testa ; falou-me que sua missão estava cumprida , perguntei –lhe para onde ia, respondeu-me não saber ainda . Seguiu em frente , batendo levemente com o punho nas paredes do corredor , após um abraço de despedida distraído e fugaz, feito ele.

Uma tarde , Flavinha , da Tesouraria ,mostrou-me numa revista aberta , uma foto do Gaspar; o texto informava dos cem anos do nascimento do escritor Samuel Beckett. Perguntou – me se não era o Gaspar . Gelei da cabeça aos pés: a mesma camisa de gola rolê , a calça jeans que parecia saída de uma garrafa ; li a reportagem ,esbarrei no relato da facada (agressor desconhecido,em Paris ,1938 , afirmava a revista ) e respondi que não, era apenas uma incrível e notável semelhança. Gaspar nunca esperou nada ou ninguém , nem mesmo Godot .Ela riu feito uma doida e beijou - me entre os olhos.


andrealbuquerque

 
Autor
andrealbuquerque
 
Texto
Data
Leituras
1231
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
9 pontos
9
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Felipe Mendonça
Publicado: 17/06/2012 22:42  Atualizado: 17/06/2012 22:42
Usuário desde: 01/12/2011
Localidade: Rio de Janeiro
Mensagens: 541
 Re: O farol
Demais. Vou postar no blog. Grande abraço, André.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 17/06/2012 22:58  Atualizado: 17/06/2012 22:58
 Re: O farol
Olá André!

Um belo e intrigante conto. Gostei muito, como sempre. Tua narrativa está primorosa. És um excelente contista meu amigo.

Meus parabéns!

Um abraço



Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 18/06/2012 11:44  Atualizado: 18/06/2012 11:44
 Re: O farol
Um encanto, um lindo texto


Enviado por Tópico
KNaegelle
Publicado: 02/12/2012 03:18  Atualizado: 02/12/2012 03:18
Muito Participativo
Usuário desde: 12/06/2010
Localidade:
Mensagens: 89
 Re: O farol
Muito bom! O final foi surpreendente e deixou uma interrogação no ar,talvez fosse ele mesmo...

Parabéns! Um conto notável! Um abraço!