Prosas Poéticas : 

Inutilmente a manhã na fronte

 
Inutilmente a manhã na fronte
a manhã repousada nos gentis gomos, nos cílios fluviais de trilhos brandos
se, na Lezíria ao largo, ardem queimadas Outonais,
se a terra ressequida aguarda a cama láctea das cinzas,
das colheitas póstumas, residuais.

É fim de tarde, o nevoeiro cai agora espessado. Pardacento, vagaroso, sobre a palha incendiada antes da safra.
O vento amainado como por magia, afaga desposado a terra quente na biologia comprometida dos solos rubros de porções inimagináveis.
Instáveis, a vegetação e a biodeversidade, gemem no gérmen ainda cálido p’la nostalgia.
Tomba a lágrima. Rebola no espelho das águas, galopa o vazio no dorso do dia, alazão chicoteado por sombras insondáveis.

Ao lado o rio, o rio que se azula, que se estiraça, que gesticula efémero em dádiva e busca. Rebusca a chegada dos deuses, o romper anunciado do manto glaciar.
[Seremos deuses, amado, dum tempo que tarda em se encontrar.]

Inutilmente a manhã na fronte
conquanto, na acidez do pranto, afluentes, lençóis freáticos e demais espaços compósitos, se confundem e baralham na assimetria de todos e quaisquer propósitos
de ser verdade
de ser saudade ou apenas e tão só, palidez de lua, esquálida performance de imaginária realidade.

Inutilmente
o gesto a escorrer-se deslumbramento p’las paredes das entranhas na qualidade comprometida da água na nascente da vida.

Inutilmente,
a flauta de Pã, o filamento túrgido em busca de ser manhã, se o fogo chacina todos os verdes das sebes e dos prados, e se o flato revivido desfolha o tempo manso que se ajardina numa cartografia estranha.

Na fragilidade dos agros ecossistemas poluídos pelos óxidos nítricos, os sentidos despertam feridos da dormência de um sino lento.


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Autor
Mel de Carvalho
 
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Enviado por Tópico
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Publicado: 17/11/2007 21:40  Atualizado: 17/11/2007 21:40
 Re: Inutilmente a manhã na fronte
E esse sino que lentamente vai tocando, acorda a minha sonolência para os sons divinais na eternidade do sonho que criei na minha mente.
Será isto uma tela?
Ou uma pintura abstracta que alimenta a minha candura.
Beijinho
ConceiçãoB


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 17/11/2007 22:20  Atualizado: 17/11/2007 22:20
 Re: Inutilmente a manhã na fronte
Talvez a autora se sinta mais à vontade nesta forma literária em que a sua riqueza léxica melhor se evidencia, e em que o prodígio da mãe natureza, e a causa ecológica, mais arte e talento requerem para serem retratados, magistralmente como no caso vertente. Eu sinto-me tentado, todavia, a imaginar diálogo, romance, ficção nestes quadros tão bucólicos. Sou um homem do campo e o campo para mim só existe com pássaros e namorados! Por favor Mel, meta lá nem que seja um simples "ai" ou "ui" de um par apaixonado e o seu texto vira realidade, literatura da mais alta qualidade. Parabéns.