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a morrer do mundo

 
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não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


como é que um homem deita o corpo a descansar se o descanso está a falecer – tudo o que vejo é apatia. tudo o que sinto é desespero. tudo o que faz cor dá negro – tudo está falecido antes de estar – e olho. e volto a olhar. e tudo está a desaparecer. até a luz. ainda hoje pela manhã era dia aberto e agora já é noite – quer dizer. ainda não é. mas já se faz anunciar – e rodo para norte o corpo. e depois para sul. sem saber como sossegar – entre mim e o nada uma flor. desgostosa. desamparada. desprotegida. sem nome – nunca soube o nome de flores. talvez seja um girassol. um jacinto. uma estrelícia. uma papoila. ou uma rosa – não interessa o nome dos que estão doentes. afinal está murcha. está a falecer. talvez falta de chuva. não chove dentro das casas. ou então. talvez seja falta de pessoas capazes de trazer a água do céu para casa . não sei. se soubesse talvez pudesse ajudar. mas não sei – sei tão pouco da vida – estou somente capaz de observar as coisas. sinto-me estranho. esquisito. talvez não venha de mim este mal-estar. talvez sejam os outros a fazer de mim um homem sem certeza na vida – para ser sincero não sei. eu estou igual. sempre fui pálido. com olheiras. lábios gretados. e a cabeça sem saber para que lado tombar. sempre me senti a falecer. sempre olhei mais para o passado do que para o futuro. aquele é certo. e no futuro há sempre homens a olhar para longe – agora tudo mudou. não há futuro. e as pessoas falecem antes do reconhecimento do óbito. e já não há gritos porque não há corpos para chorar. e já não há flores porque também estas já faleceram antes dos corpos. e já não há campas abertas porque o coveiro faleceu no dia em que lhe roubaram a pá. e já não há missas porque o padre faleceu antes de deus mandar o seu filho à terra para falecer por gente que não vale coisa nenhuma – também deus já sabia do falecimento do seu filho mesmo antes de falecer. e cristo também sabia que tinha nascido para falecer numa cruz feita por homens que nunca trazem água para as flores doentes e sem nome – todos querem um pedaço de tempo a qualquer preço – e tudo seca quando as nuvens não carregam água. e judas sabia que só o falecimento do filho do criador daria sentido à sua vida. e a vida está cheia de gente que só aparece com corpos a falecer – as moedas de judas só entram na narração para criar enredo. faleceu para ficar na história. faleceu pela ganância. e nunca ressuscitou. e nunca soube o nome de uma flor. e nunca trouxe água na palma da mão. e o mar morto infestado de sal não deixa o corpo desaparecer. e o mal sempre à tona da água. e o homem também – só não sei o que vou fazer ao meu corpo para o fazer descansar. estou numa história que não é minha. não consigo dormir. não consigo amar as vozes que reconheço. não consigo sossegar. e tudo dentro de mim está cada vez mais distante do mundo dos que ainda não faleceram – quando era novo sabia tudo e agora nunca sei nada. talvez esteja a falecer também das ideias – e o mundo anda. e eles mandam o mundo andar como se o pão sobrasse pela falta de bocas. e uns comem. e outros olham. e a chuva parada entre o céu e a terra. e os pássaros com asas de cera gritam pelo nome da santíssima trindade e moisés às gargalhadas. não há terra prometida. nem vida depois da morte. e a igreja falecida manda rezar. e o comunismo falecido manda gritar. e o capitalismo falecido manda roubar. e as doutrinas na mão de gente que nunca faleceu por nunca ter nascido para a vida das flores sem nome. dos pássaros. da chuva. das manhãs feitas de sol. da juventude. dos doentes. da mulher esperança. do pai de mãos ásperas. da justiça. da rua verde. da cerejeira. do cão. do abraço. do olá. do bom dia. da história contada à cabeceira da cama ao filho com medo de um fantasma que se chama papão. da estrela polar. e da lua que cresce e minga com os dias que fazem dos velhos gente sábia e respeitada – nunca se ama o que não tem nome. nunca falece o que não nasceu para os olhos. o que não tem rosto – faleço. faleço todos os dias – escrevo para continuar a falecer desta dor que nunca foi capaz de saber viver dentro de um corpo que teima em parecer saudável – um dia falecerá de vez
 
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sampaiorego
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 13/06/2012 23:10  Atualizado: 06/09/2012 20:12
 Re: a morrer do mundo
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Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 14/06/2012 07:19  Atualizado: 14/06/2012 07:19
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Usuário desde: 31/03/2008
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Mensagens: 8112
 Re: a morrer do mundo
olá sampaio rego
grande texto, grande no sentido, (com o qual concordo plenamente) pois neste mundo onde impera uma crise de valores, a que acresce a preguiça, até para ler e perceber, raros serão os que interpretarão e atingirão o que as palavras até dizem de forma martelada. aliás os comentários anteriores, a morrer do mundo, concreto e literário (na sua forma mais bossal) são prova disso.
beijo
roque








Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 15/06/2012 05:49  Atualizado: 15/06/2012 05:49
Membro de honra
Usuário desde: 25/01/2009
Localidade: Pouso Alegre - MG
Mensagens: 18598
 Re: a morrer do mundo
Quando o mundo engole um nome, fica um
"EU" imenso em poesia texto, como só voce
com um braço só sabe fazer (admiro).
Acho absolutamente fantástico um comentário
que Shakespeare faz sobre o que acontece com o
intérprete. Ele diz algo assim:
Como é que pode uma ficção, uma coisa que não existe,
envolver o intérprete de tal modo que ele fica possuído
por ela? Ele chora, ele ri, ele vive aquela coisa.
Pois a poesia é isso. È preciso que as pessoas entendam
que a poesia é uma experiência de possessão. E isso não
se ensina nas escolas.

Podias me ensinar? beijo querido e obrigada


Enviado por Tópico
Sergio de Sersank
Publicado: 15/06/2012 07:07  Atualizado: 15/06/2012 07:13
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Mensagens: 159
 Re: a morrer do mundo
Prezado amigo, Sampaio Rego.
Bom dia.
Achei que devia escrever-te estas linhas. Reli o teu texto e os comentários. Realmente, o título escolhido me soou um pouco estranho. Me parece um pleonasmo. Não seria muito diferente, penso, dizer "a morrer da vida". Claro, a expressão pode se justificar sob o argumento de que reforça a idéia de "morrer conscientemente". Algo assim como "estou morrendo, sei disso". Mas o texto é bom. Escreves com fôlego, tens estilo.
Ao referendar o comentário da Márcia, quis me referir à tua forma de apresentação do texto - com frases curtas, interpoladas e excesso de pontuações - pouco usual, na verdade. E, para ser objetivo: antigramatical.
Mas, hoje em dia, tudo é válido. Muitos autores têm buscado nessas variações estilísticas, tanto na prosa como em poesia, (caso dos concretistas e da poesia práxis), uma forma de metalinguagem, ou a linguagem supostamente ideal. Deve ser o teu caso. O Senhor deve ter razões de sobra para preferir escrever assim.
De minha parte, Sampaio, procuro me ater às formas clássicas, tradicionais. Por isso, evito os neologismos e não abro mão da sintaxe. Dou muito valor à escrita que flui, descomplicada, simples e objetiva. Mesmo em poesia, não aprecio o emprego de certos símbolos fraseológicos que visam dar ao trabalho ares de erudição e acabam por tornar o conteúdo bastante hermético, quase inintelectualizável, se posso me expressar assim.
Mas, enfim, vejo que tens alma de poeta e sabes descrever com vigor, as coisas do coração.
Perdoe-me, pois, a intromissão descabida.
Abraça-te com votos de cordial estima e saudações de Saúde e Paz
Teu amigo,
Sergio de Sersank








Enviado por Tópico
cleo
Publicado: 17/06/2012 22:05  Atualizado: 17/06/2012 22:24
Usuário desde: 02/03/2007
Localidade: Queluz
Mensagens: 3731
 Re: a morrer do mundo
Caro amigo
Grande dissertação, eu diria mesmo que é uma genial alucinação da lucidez, sobre o falecimento prometido de todas as coisas...
Nada morre de repente, tudo vai falecendo aos poucos.
Mas o que mais me assusta, é o falecimento das almas das pessoas, muito antes do próprio corpo.

E o que dizer do título(bem como de todo o texto)... bem ao estilo de Lobo Antunes que também é António, mesmo como eu gosto

Mesmo muito boa a prosa do meu amigo!

PS. Voltei aqui só para dizer que tinha escrito este comentário antes de ler os restantes e agora que vou na leitura da resposta dada à Marcia, verifico com satisfação que não me havia enganado quando o comparei ao nosso melhor escritor vivo - António Lobo Antunes.

Isto foi só um pequeno à-parte, agora vou continuar a ler o resto, pois adivinham-se coisas interessantes por ali...