Saímos de casa pela manhã
com ganas de devorar o dia
lavadinhos e perfumados
prontos para rebolar no lodo
que tolda o quotidiano dos caminhos.
Com a boca ainda ressequida
lambemos as últimas sombras da noite
e todas as esquinas do frio
antes de chegar ao café do costume
onde num ritual de asas enferrujadas
ingerimos o primeiro veneno do dia.
Entre duas baforadas no cigarro
e um tremor vago que sacode o corpo
trocamos o rosto ensonado
pelo disfarce insone que nos permite
agarrar o esplendor desabitado da vida
seguindo a linha desenhada nos passeios
com os pés a resvalar dos estribos.
Não é permitido gritar nem desviar o olhar
lemos nos cartazes coloridos
que anunciam em placardes gigantes
todo o esplendor da teia
enquanto transpomos o degrau já gasto
pela persistência mórbida dos passos
escondendo no bolso apertado das calças
as lágrimas que jurámos não derramar.
Fantasmas de uma dimensão sem idioma
despojamo-nos de tudo o que temos
para alimentar a sede de um cartão de crédito
que nos vai permitindo manter à tona
nas águas estagnadas donde nunca sairemos
lambendo a poalha inquinada das vagas
e o papel químico das manhãs
que reproduzem a repetição grosseira dos dias.
São precisas mais drogas agora
para continuar a desfiar o novelo.
À hora do almoço, como uma brisa refrescante,
uma pequena brecha se abre
no centro da arena onde nos perfilamos
como gladiadores condenados.
Uma inesperada trégua
para uma cola e uma sandes de atum
permite-nos retomar o fôlego e o alento
antes que o gemer sufocante das roldanas
retome sua cabala alucinada
arrastando-nos pelo suor dos cabelos
até aos limites esvaídos do dia
e o peso da grande roda cilíndrica
repetidamente nos volte a esmagar
como lagartas insignificantes.
Nenhuma estratégia nos vale agora.
Nenhuma droga pode suster
as foices afiadas da dor
que nos retalham a réstia de alento.
Sob o fogo extinto do crepúsculo
enxaguamos o sangue das feridas
sacudimos a poeira do corpo enrodilhado
e suspiramos fundo, três vezes,
enquanto a noite assobia detrás das colinas
o requiem do eclipse total do dia
e lentamente se fecham
os portões verdes do manicómio.
A rigidez fria dos ponteiros, obriga-nos
a uma nova travessia no trapézio sem rede
como a ave que arrasta a asa partida
deixando seu lamento de papel
nas garras do alcatrão abrasivo
e voltamos como se nada tivesse acontecido
ao ninho donde saímos pela manhã
lavadinhos e perfumados.
Antes de fechar os olhos
e nos entregarmos a um sono sobressaltado
com o coração entalado entre os lençóis
oramos um credo sem nome
a um deus que não sabemos se nos escuta
e rebobinamos de novo a fita
para amanhã assistir ao mesmo filme.