"Os espelhos têm algo de monstruoso. Os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número de homens". Jorge Luiz Borges
Vagando pela casa chego ao banheiro.
Detenho-me frente ao espelho iluminado,
Levanto os olhos e olho-me assim profundamente,
Tão profundamente que sinto ver-me ao avesso.
E desses olhos atentos a ínfimos detalhes,
Saltam esses eus como carnegões que grudam no vidro.
Viro ligeiramente o pescoço...
E aquela ali no canto, sim aquela!
Ali do lado direito,
Olhar cansado das batalhas renhidas, braços pendidos,
Um desalento do tempo se escoando,
Escoando como escoava a areia, pelos pequenos buracos,
Sumidouros nos vãos de madeira das velhas pontes que eu vi.
Olhar que se abisma com o como conduziu a vida!
Essa que agora se encantoa em lamúrias circunstanciais,
Dos vieses desse trem desgovernado,
Que leva ao nada esse tudo já vivido.
Quem é essa mulher afinal, que perplexa,
Olha a outra que a observa no espelho,
E devassa seus segredos não guardados,
Do que fez de si tão impensada, e do que não fez quando podia.
Errou o trem, errou a gare, errou!
E esse olhar que agora trocam, essas mulheres estranhas,
Um de espanto, o outro de desdém, [ou seria piedade versus raiva],
Por ter sido o que não é, por não desmentir o equívoco,
E mesmo assim continuar...Continuar verdadeiramente não sendo.
Esse olhar que afina os olhos, apura o foco ao limite,
É de lástima, sim, de lástima certamente!
Mas ali, naquele exato momento,
Quem é que lastima quem?
Essa do lado de fora, que se entende por guerreira,
Que luta, ama e projeta ser de valia e valer,
Que segura o tal destino nas unhas da sua vontade?
Ou a de dentro: no canto, braços pendidos,
Sem qualidade, farsante,
Pés no chão das impotências, das certezas arrogantes,
Sem crédito, sem crer, sem lágrimas,
Apenas que venha a vida, seja e passe como quiser.
Eu? Talvez seja outra...Aquela lá ó...
No lado esquerdo do espelho, olhar distraído,
Simplória! Que acredita que a sorte,
É que desfez seu destino,
Aquela louca que vê, uma só imagem refletida,
Uma só mulher no espelho, sozinha viajando a vida.
Há outra mulher ali...Ali no centro!...Uma estranha?!
Sim, vejo, mas nem conheço!