A AUTOPISTA DA PRAIA
Ao meu lado, tão linda , a beleza flagrada em pleno sono ; um corpo
entregue á própria lassidão , neste casulo de ar condicionado e
silencio , a duzentos quilômetros por hora . A pista é agora uma reta
sem fim ,os pneus produzem um som de água correndo,a paisagem
pouco mais que borrões verdes na minha retina . Pequenas cidades
e povoados surgem e desaparecem,no zapear da velocidade ,são
figuras que vão se amontoando lá para trás , comprimidas pelo
vácuo em suas vidas tranqüilas e pacatas . A bela Inês repousa do
mundo bárbaro . O caderno sobre o colo , a caneta presa na espiral
e servindo de marcador , a regularidade dos traços rafaelitas , acima do
bem e do mal , aprisionados num clic de máquina fotográfica . Os
seios de talhe perfeito , maciços, estufando a camiseta no relevo de
mamilos divinos , ainda eriçados pelo frio .Uma deusa pós moderna,
Pégaso no braço , tentando alcançar o sol de hena e raios trêmulos,
na vida sem literaturas.Há dois dias atrás depois da aula ,abracei-a
e beijei-a ; um abraço de náufrago ,um ismael indefeso , agarrado
ao esquife do companheiro , mas tragado para sempre ,para dentro
daqueles olhos castanhos e subitamente inexpressivos ,límpidos.
A calma suprema de quem contempla uma explosão muito longe ,
anos – luz de frio distanciamento emocional e compaixão zero,
impossível de fingir , pois fingir nunca foi o seu forte ; durante
alguns anos ,foi minha fortaleza o fingimento, aturar a mulher que
não me amava mais , um casamento natimorto sem descendentes
a celebrar meu grande vazio. A natureza abomina o vácuo – nem
lembro mais quem falou ; surgiu Inês em minha vida , uma neo –
-realidade suburbana , a sensualidade safadinha , sexo na cabeça
e na alma ; chutei o pau da barraca , fiquei sozinho do jeito que
nasci, segurei pelos longos cabelos , aquela oportunidade de provar
que ainda estava vivo e buliçoso . Nunca moramos juntos , assim
exigiu , assim existimos . Dois anos e uma crônica de amor louco
para sempre inédita , pois nunca escrevi nada a respeito do amor ,
além da sala de aula , dos modernos cânones literários ,o suficiente
para o vestibular de qualquer coisa que termine em contra cheque
regular e aposentadoria decrépita e vazia ,melhor dizendo,até um
ex–namorado ressurgir do reino das sombras e cravar a estaca no
meu peito arfante de quarenta roliúdes por dia . Estrepitosamente ,
ridiculamente, caí de quatro, tomando todas , cafungando, sempre a
chafurdar na própria merda . Não sei quanto tempo fiquei nesse
esgoto , até que resolví metabolizar aquilo tudo ; marcamos um
encontro na praça em frente do cursinho ; esperei – a num tesão
de ansiedade juvenil .Chegou linda ,sorridente, beijou-me de leve,
um beijo de lápide funerária , que me virou pelo avesso . Um abraço
cem por cento angústia , dor de corno em estado de arte .Comemos
um sanduíche na lanchonete em frente,convidei –a para uma volta
de carro ; aceitou constrangida , rodamos um pouco pelo centro ;
do rádio ,Stevie Wonder e Superstition não me deixavam espaço
pras abobrinhas ,a mente funqueava á toa,gaguejava pensamentos
e fragmentos .Na verdade não tinha mais nada a dizer,muito menos
ouvir , percebi ao contemplar- lhe o perfil . Parei e pensei . Olhei -
– a bem nos olhos grandes, acariciei seus cabelos e atirei entre os
seios ; aquele rosto não merecia ser estragado . Ela simplesmente
virou a cabeça para a janela e mergulhou no sono profundo . Dei
partida , peguei a autopista da praia e segui em frente ; há dois
dias viajo com a rainha morta , Inês,que seria de Castro se um rei
traído não fosse eu e fossem as pessoas nas ruas , obrigadas a
beijar- lhe as mãos , tão belas e frias , em muda admiração.