Ontem, roubei as palavras que não tinha, ao entardecer. Ele nem deu por nada de tão atarefado que andava a arrumar a casa depois da festa de mais um dia. Era preciso arrumar tudinho nos lugares certos e limpar o que restou do rebuliço imprevisto da chuva. Havia que pintar o céu de vermelho, aproveitando os últimos raios de sol já desvanecidos pelo cansaço da luta contra as pesadas e poderosas nuvens que agora se rendiam ao cansaço, estendidas em lençóis cinza - claros por sobre a cama serena do horizonte embriagado que as acolhia para seu deleite...
Era preciso adormecer as campainhas amarelas da Primavera, os brincos de princesa dos canteiros das casas da aldeia inteira e acomodar os girassóis que tombavam de sono.
Havia que convencer os tagarelas dos passarinhos a calarem-se e a sossegarem nos seus ninhos de penas macias que as árvores escondiam nos galhos cimeiros.
E as estrelas? Ninguém se lembrou ainda de as acender?! É preciso iluminar o céu. Já!
Tudo tinha de estar perfeito para ela... e sabia-se que ela não tardaria a chegar.
Dentro em breve e para espanto de todos, sempre como se fosse a primeira vez... a deusa da noite surgiria cintilante e arrebatadora, envergando o seu ondulante vestido de prata, onde se espelhariam todos os encantos dos olhares que se reflectiriam no extasiante brilho dos seus cabelos esvoaçantes de brisas nocturnas...
Deslumbrado perante a perspectiva de tamanho arrebatamento, o entardecer distraiu-se e deixou que lhe roubasse estas palavras com que vos descrevo as luxuriantes orgias celestes ocorridas sob a cumplicidade do lusco-fusco.
Ontem, a deusa lua foi rainha e brilhou como nunca!...
E, mais uma vez, foi musa de poetas e aprendizes até raiar este novo dia.