não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
lembro – as caras sorriem. os olhos falam e a mesa redonda maior que o mundo que deixei em espera á porta da rua – tudo na mesa é perfeito. a toalha branca anuncia a vontade dos espíritos para aquele encontro. as palavras são feitas de sorrisos e a conversa é conforto – as perguntas aparecem: estás bem? tudo vai bem? como estás? a saúde? e a cabeça acena que sim contra o peito que dói. um homem nunca pode dizer não quando o corpo repousa numa toalha branca – os olhos apertam. as mãos tocam. os pulmões respiram baixinho. só as vozes ocupam espaço. e a toalha é agora feita de palavras que não param de mexer de um lado para o outro às cores como se fossem arco-íris. caminham como se estivessem á mercê de uma corrente de ar e tudo é abraço. e eu ali preso ao que vive dentro de mim e as palavras sempre meigas como se tivessem inteligência e soubessem que é assim que magoam – só estas ainda são capazes de me magoar – e a cabeça abana. e sim. e sim. e sim. e a cabeça para baixo e para cima – esta coisa de não saber falar é dor – nunca digo o que deveria dizer. nunca olho como deveria olhar. nunca sou capaz de desobstruir aquela rua que desaproveitei nas primeiras palavras que aprendi a escrever. era uma criança. numa escola feita de pedra. talvez por isso fiquei feito de palavra-pedra. não falam. nunca falam quando preciso delas – e o corpo cada vez mais pequeno para a alegria – há momentos na vida em que perdemos a memória. e o que era bom deixou de ser e o que era bondade é fel e a crença é demónio e a dor é hábito como quem faz do fumo do tabaco o cheiro do corpo – somos para sempre este cheiro que não é perfume e a primavera são silvas e o meu ano o pior dos últimos duzentos anos. e o vinho a pior colheita. e os pomares vazios pela tempestade feita de chuva-pedra e tudo a meu lado pisado pela fome de quem não sabe alimentar o corpo a não ser com sorrisos que não passaram da flor. e o fruto perdido para sempre – confesso. tenho ainda alguns adjectivos por usar na sinopse da vida - sem querer forçar muito a memória ainda dorida com o embate do corpo contra a idade. lembro com ajuda de bach. que toda a melodia necessita de vida para ser ouvida. adjectivar a minha vida seria desastroso. ainda há gente que me vê como eu não me consigo ver. ainda há gente que me beija como se os lábios fossem milagre. e o pão são rosas e o toque da mão diz-me que estou vivo. e a dor do que perdi esqueço. a gaivota voa e as asas cortam o tempo. a palavra chega aos poucos para dizer um pouco do que não consigo dizer – não sou capaz. nunca serei feito de palavras na boca – dentro de mim esta rua que me corta ao meio é feita de gente que me fala ao ouvido com vontade de viver – desiludir os que nos tocam com a suavidade que o tempo não destrói é agora mais uma palavra – gratidão – 1962. afinal nasci em 1962. havia almanaques em 1962. quem havia de dizer – nunca me tinha passado pela cabeça que havia gente a fazer vida acontecer em 1962. curioso. nunca encontrei nada de relevante nesta data. talvez “malapata” do ano. também nunca encontrei nada de valioso no que sou ou no que faço – percebi porquê – o santo do meu dia chama-se aniceto, décimo primeiro papa. proibiu os padres de deixar crescer o cabelo para este não ser motivo de vaidade. e tudo se resume a um par de tesouras e gadelhas a bater nos ombros – nada em 62 é importante. nem santo. nem papa. nem eu que nasci depois das doze. já o sol estava a cair para o ocaso – Importante mesmo são aqueles que passados cinquenta anos me fizeram saber que a vida é consumida na sua totalidade. cinquenta anos mais tarde sei que antes de 62 havia outro ano capaz de dar ao meu ano a razão que eu desconhecia – no últimos anos da minha vida esqueci tanta coisa. tantas caras. tantos corpos que me eram familiares. e a vida sempre a caminhar e os séculos a passar em livros. e os jornais a dizer que em 1862 a vida e as casas tinham gente que faziam tempo e todo o tempo é importante para dar sentido ao meu – onde há um avô há um filho e depois outro e depois ainda outro e depois a rua cruza-se e o dia de chuva abre sol. e o sol é tudo o que preciso para viver – ninguém vive sem nascer. viver é um abraço que só se sente quando é saboreado – e a mão por cima da minha faz-me estremecer. afinal estou vivo e amanhã tenho que escrever mais do que hoje para poder voltar a dizer que em 1962 alguém nasceu para colher sorrisos cinquenta anos mais tarde –