Não me deixei cair na mesquinhez de lamentações fúteis, os meus olhos negros escondiam uma menina órfã que rapidamente moldou uns belos seios de mulher, desejei-os antes de os entregar à ira da mediocridade dos ladinos. Quis ser a primeira a tocar-lhes; sem pudor despir-me em frente ao espelho, (única peça que adornava o meu quarto), suavemente deslizei os dedos sobre os mamilos adornados de seda, endurecidos de deleite que pediam que me penetrasse, e, num vaivém de uma dança mística amei o meu corpo pela primeira vez, brindei-me com um cocktail de sabores delirantes.
Finalmente tinha-me encontrado com o meu corpo, ergui-o da vegetação, da pena incondicional a que o entregara com nojo de ser mulher. O mundo da “Besta” incompleta que me paralisara tinha fenecido, no momento em que pari a própria vontade de me parir; jurei não rezar mais hóstias bolorentas nem jejuar a fome da impunidade de um cão que se ajoelhava na missa à caça de mais um petiz para o seu cardápio. Voltei pela última vez ao adro da igreja, precisava de o olhar, (no olho que ainda lhe restava), no preciso instante tive a certeza que o seu sadismo não coligia rostos, havia de o matar da mesma forma que ele matou a criança no túmulo do meu corpo.
Calei-me nos retalhos enlaçados em febris pontapés, recebidos pelo instinto animal que se apossava do meu corpo. Quantas vezes me viram no covil dos bichos-de-mato, não me reconheci, não me reconheceram. O sol passava ao lado de um vulto brutalmente desconhecido, as minhas mãos agarravam-se ao desespero de um grito tolhidamente mudo, na boca os hematomas mastigavam os olhos, totalmente visionários da imagem que os tragava.
O seu rosto fedia a Besta incompleta puramente quimérica, de olhos rasgados em genitais desejos promíscuos. Queimava o meu útero de menina nas entranhas da seriedade do seu porte burguês como se bebesse num trago só, toda a minha chaneza.
O meu sangue salivava a sua gargalhada, exibindo o dente de ouro que roubara de outra virgindade …como pudesse pensar que uma menina como eu lhe daria tanto prazer se apenas me obrigou a ser mulher tão precocemente…suicidei a cólera que me possuía e possui-me da polidez.
A igreja continuava intocável, ajoelhei-me aos pés da minha meninice, enquanto um pai-nosso saía a ferros da boca do inferno dos mais devotos, todos comiam o corpo de Cristo, e, bebiam sagazmente os meninos do coro em glória a Deus. O padre bajulava os feitos da caridade do seu rebanho negro, abençoava-os com a carne mais tenra, a mais pura, com que ostentava a sua divindade em benefício do próximo.
A missa terminara; os in(fiéis) cumprimentavam-se, assim mandava a palavra do senhor.
Fiquei imóvel, olhei vezes sem conta a imagem de Cristo…o mesmo que me olhava todos os dias naquele orfanato nauseabundo; o mesmo a quem eu implorava em gemidos de espinhos asfixiados pela mão da “Besta” incompleta, enquanto possuía o meu corpo mórbido, desfalecido pela brutalidade, de um olho que orava mil perdões ao mesmo tempo que se vinha no meu cruciado desespero de menina.
Olhei-o com a mesma piedade com que olhava para mim e nesse preciso momento senti-me tão inútil quanto ele, ali pregado na cruz.
Ali estava eu sentada num banco de madeira, onde as beatas comungavam mezinhas da vida alheia na casa de Deus, de um Deus que eu desconhecia. Os santos espalhados pelo altar olhavam-me intactos, resignados por um pedido de clemência, como se eu fosse fruto de um pecado por ter nascido mulher; soltei uma lágrima irónica sobre a bondade dos homens de amor ao próximo, (quando o próximo estava tão distante de mim).
Fui crescendo na morte, que corroía as linhas paralelas das minhas mãos semiabertas. Aprendi rapidamente a renascer nos braços abertos de um espantalho, usurpando o medo que consumia os horizontes da minha solidão. Quis correr mas não tinha pernas, qualquer mortalha ostentava a minha condição de pássaro ferido, à procura de uma migração prematura.
Nem as serpentes de aço que me enclausuravam calaram a minha fragilidade de mulher, [deformada] por um vilão que se alimentava de pardais mal esboçados.
Dirigi-me ao salão de festas onde a benevolência se espalhava numa mesa de bolinhos de chuva, acompanhados de um chá Londrino. As esposas, recatadas, vendiam clichés para ajudar aquelas pobres criaturinhas, (fruto do pecado), enquanto os seus maridos acompanhavam o senhor prior para mais uma reunião orçamental sobre as obras do orfanato…de paredes que nunca mudaram de cor.
Revia-me em todos os passos de uma procissão, onde as velas eram apagadas pelo bafo da profecia corrupta do andor.
O arame farpado que rasgava o olhar daquelas crianças desprotegidas era o mesmo que acorrentava a minha voz, sentia-me tão impotente quanto elas. Era-nos dada a mesma condecoração que Cristo recebera antes da sua morte. A coroa dos apóstatas sangrava todos os dias na minha boca ao ter que calar o jejum da carne, que era saciada compulsivamente pelos pervertidos de batina e os engravatados da água benzida.
A sevícia era de tal forma violenta que todas as memórias deslizavam pelo meu rosto banhadas por uma lágrima. O cheiro nauseabundo impregnava-se pelas narinas do meu corpo, cuspindo o hálito de um charuto mal apagado.
A minha carne, tenra, era tocada pela mão da puta da caridade da memória escondida entre quatro paredes, os cordeiros não tinham nome, bastava-lhes a oferenda do sangue para dar graças a Deus.
A minha ousadia era perturbadora demais para acatar ordens vindas de animais feitos louva-deus. Nas poucas horas em que nos libertavam sentava-me a um canto perto do arame farpado que nos separavam dos meninos, e lá estava o Joel olhava para mim sem me poder dirigir um aceno, já lhe conhecia o olhar irrequieto, desobediente mas audaz, avisando-me que por baixo da terra estava mais um dos seus bilhetes à minha espera. Nessa tarde aprecei-me e num momento crucial de ansiedade fui apanhada por uma serviçal do senhor sem ver a mensagem que possuía.
Sabia que o castigo era vindo, e que Joel iria ser punido mas o meu maior receio era perder o meu único confidente, apesar de nos comunicarmos através de gatafunhos sabíamos o sentimento um do outro, e tal como nós, eles também eram violentamente abusados e maltratados pela mesma impotência que nos fodia constantemente.
Tantas vezes confessei a morte aos pregos da minha cruz...mas até essa me era negada, fui brutalmente castigada; amarram-me os braços aos ferros da cama, passei semanas fechada num porão onde a luz se apagava no meu sofrimento atroz; tinha que aprender a respeitar o silêncio e pedir perdão pelos meus pecados. Nem a vida nem a morte eram pertença dos meus desígnios.
Absolvi-me numa pena quase perpétua como a carne que me sustinha, quantos casulos vesti à procura da uniformidade de um ser pespontado pela indiferença. Escondi-me tantas vezes de mim, com medo de me reconhecer culpada. Se ao menos alguém me tivesse lido os meus direitos, talvez não ousasse falar da dor com que me condenei, só por saber-me viva.
Nenhum esquizofrénico se reconheceria numa única identidade, a resposta seria sempre a mesma; “É o amor que me move.”
“E eu? Que nem por amor nasci, tantas respostas me quis dar, atraí uma morte prematura.”
A noite ajoelhava-se a meus pés, frios, rejeitados pela morte. A dor e a fome calavam-se no pesar dos ponteiros de um relógio que marcava as horas mortas. O silêncio gritava desesperadamente ao meu ouvido, o rosnar de um pêndulo passeava-se num vaivém desajeitado, anunciando a vinda de mais um dia, como se fizesse alguma diferença.
A tortura e o desprezo confundiam-se com as bonecas que nunca tive.
As minhas forças começavam a fraquejar, enfim, sorri no meio de uma febre súbita que reacendeu a minha esperança da morte tão esperada.
Identifiquei-me no passado, revi-me no futuro mas nunca me encontrei no presente, talvez porque o aqui e agora fossem imagens tão surrealistas como o alto da ponte, onde me abeirava duma queda livre para o abismo.
Maltratei o presente com ânsia de um futuro que não me conhecia, era de outrem. Só o passado me pertencia, tive que marcar um encontro com a menina que mantive em cativeiro na berma do medo onde acordava.
As donzelas de hábito negro confundiam a minha fraqueza com as correntes que me sugavam os pulsos aos ferros da cama. Uma das penas a que fora condenada pelos juízes da (com)paixão bíblica, tinha-me sido absolvida, libertando-me da condenação das correntes. Abrir um rasgão no velho colchão de serapilheira, onde escondia os escarros sangrentos que me saiam pela boca e ao mesmo tempo sufocava a tosse com os farrapos velhos que me cobriam. Senti-me perto do fim ou do início que eu ignorava. Qualquer inferno seria melhor do que aquele onde a Besta, incompleta e os seus discípulos, usavam a palavra de Deus para excruciarem e fornicarem petiscos inofensivos.
Não conhecia a despedida, nem o adeus me concernia; a vida que me pariu foi a mesma que me abandonou nas pedras órfãs da rua. A água benta que me benzeu chamou-me filha maldita, constava-se ali, nas redondezas das Capelistas, que minha mãe se vendia para sustentar os vícios de um chulo. Como éramos análogas, ela vendia-se e eu era vendida a qualquer preço, desde que alimentasse a fome dos abutres que erguiam a cruz, e, repetidamente diziam, “Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...como era no princípio, agora e sempre, Amém”.
A febre enclausurava o meu corpo em chamas com delírios provindos das cachinadas suburbanas, que se ejaculavam no meu rosto. Entrei em gritos convulsivos com as sombras vazias dos meus olhos. “Maldita, maldita até tu me abandonaste! Prometeste levar-me contigo…maldita, onde estás tu morte que tardas em chegar?”
Desfaleci sobre o túmulo da minha consciência.
Tinha perdido a noção do tempo. Quando acordei, um clarão de luz ofuscava-me as pálpebras ainda meias moribundas, não sabia onde estava (por momentos julguei-me morta, envolvida num manto branco de lírios que me cobriam os pés).
Senti-me confusa à medida que ia acordando, a imobilidade apenas continha o meu pensamento.
Comprimia o ranger das portas, quase tão débeis quanto eu. Alguém tocava uma sonata de chaves desalinhadas em passos apressados.
A ansiedade ia acendendo os pequenos filamentos da minha memória; ora meia ébria ora meia sóbria. A urgência de saber onde estava era quase uma utopia e todos os sons eram bem-vindos, precisava colossalmente acordar a minha lucidez.
O quarto não tinha janelas, apenas um pequeno ventilador onde os ruídos se confundiam com vozes. A porta de ferro asfixiava qualquer ar que por ela tentasse entrar ou sair; sentia-me como se estivesse estranhamente assustada, num labirinto onde o Minotauro me esperava a qualquer momento.
A porta abriu-se, fingi a minha dormência prematura entre um supercílio de desconfiança. O homem vestido de branco olhou-me; quase não lhe ouvira os passos, deslocava-se em silêncio, identifiquei-o pelo falsete lacónico das chaves que entoavam um compasso rítmico de dois quartetos desmesurados.
Trazia um frasco na mão, o mesmo que eu observava por cima do meu olhar. Arrefecia o meu braço em gotas tão suaves, como o orvalho que perfazia o imaginário da minha ingénua liberdade.
Decidi abrir os olhos, olhei-o dentro da íris da sua alvura mas nem uma palavra tingiu o rosto daquele ser. Nesse preciso instante lembrei-me da frase de Joel; “nós somos os filhos de um Deus menor, que nos abandonou no acto da nossa fecundação, seremos eternamente os filhos de ninguém”.
Nunca consegui descobrir o que aconteceu ao Joel, simplesmente desapareceu como a primeira chuva que cai na terra. Passou a ser um nome proibido como os açaimes que calam o focinho dos cães.
Já tinha perdido a razão da minha consciência, nem as agulhas que se acomodavam nos meus braços esguios me matavam. Ironicamente as minhas incógnitas amontoavam-se na incerteza dos lençóis brancos que revestiam o meu corpo. A sopa, que me davam por vezes, trazia uma pequena mosca que tentava a todo custo desandar pela borda da tigela, meia em decline.
Éramos dois seres idênticos à procura da mesma condição; a fuga, qualquer saída seria perfeita desde que a morte não fosse infiel à rapidez das asas do pensamento.
As memórias começavam a surgir espaçadas entre o despertar anímico, num vai vem de colheres de sopa morna, com a mesma temperatura com que as recordava. Subitamente as imagens advinham aglomeradas como os ramos de um pinheiro bravo à procurada das raízes na terra.
Finalmente descobri a razão do meu internamento:
“Mas…mas porquê? Porque não me deixaram morrer? O que querem mais de uma órfã, como eu?"
Sabia das preferências da Besta, ao dar-me a morte perderia um dos seus mais gostosos fetiches, a menina arisca de sete anos.
A menina que não temia o roncar dos porcos com cio, dos gemidos estridentes, do sémen que despojavam sobre o meu corpo franzido em honra da virilidade.
A confusão impunha-se como uma abóbada lapidada, o declive dos pombos era imperceptível, qualquer cão esfomeado havia de lhes pegar, mesmo que as feridas coagulassem o sangue de um voo mais ousado.
Não! Não consegui voar mais alto que as próprias pernas, perdi as asas da minha meninice numa revista pornográfica, que se movimentava sobre o meu corpo.
Ainda consigo ouvir o relinchar do giz no quadro de xisto negro, onde as primeiras palavras se transformavam em rabiscos sem definição.
Chamava-se Teotónio, assim era reconhecido o mestre da caridade, a Besta que sugava a carne dos meninos como eu, independentemente do género.
O chefe da matilha era distinguido pelo poder numerário, das beneficências que depositava na caixa dos pecados.
Se ao menos houvesse alguém, que não fosse o senhor dos pregos, em quem pudesse confiar, mas não nem um sorriso me esboçava o pensamento, nem ninguém se interessava por faze-lo. Os meninos eram um peso nas mãos da cristandade, tal qual os pregos que seguravam o inferno na terra prometida.
Nunca soube o meu verdadeiro nome, chamavam-me Maria, quase todas éramos tratadas por Maria, enquanto os rapazes por José. Os nomes não nos traziam identidades definidas mas sim as ordens e os números que trazíamos preso ao pescoço por um fio de nylon. O meu era quatrocentos e oitenta e cinco. Diziam-nos que era a data da chegada, que outros não tiveram a nossa sorte de ter um lar abençoado que os recebesse, que deveríamos dar muitas graças a Deus.
Quantas Graças morreram silenciadas, fodidas pela mão do poder da misericórdia, quantos decidiram apreçar a vida para poderem encontrar esse Deus tão usado infamemente pela boca podre dos usurpadores da carne de crianças indefesas.
Não consigo deitar-me antes que o sol se levante, é ele que se levanta por mim, eu apenas acompanho-o nas sombras da minha memória. Vou-me revendo nos passos de um mórbido espelho quase tão baço como as heras que cobrem a minha nudez. Senti-me uma puta precoce, possuída pela malvadez gratuita de um verme. O meu estatuto feminino era tão imprescindível como a toalha que lhe limpava os pés.
Não sei há quantos dias, permanecia naquele quarto, nem sequer onde estava mas isso era o que menos me preocupava, avizinhava-se a desconfiança, o incerto, as perguntas surgiam como sirenes catastróficas nos meus tímpanos.
“Porque demoram tanto?”
Naquele preciso momento ouvi o compasso de chaves mas desta vez acompanhado de passos apressados. Estremeci ao senti-los na minha direcção, o medo calou-me as palpebras no escuro, lá não me sentia tão só, sentia-me protegida.
Entraram no quarto acompanhados pelo homem de branco, a Besta, Padre António e a cabra da irmã Celeste, um turbilhão de sentimentos apoderaram-se da minha ira, se pudesse naquele momento queimá-los…desatei a rir, possuída pelo ódio que engolia a ferros em brasa.
O homem de branco retirou-se a mando da Besta, estava a ser observada pelos três farsantes do terço quebrado, não podia descair-me usei uma amnésia precoce, sorri-lhes conjugando a minha raiva com um certo requinte de calmaria.
Nem uma palavra me dirigiram olharam-me como a filha da puta desconhecida, à procura de vestígios recalcados. Sabia que estavam a testar a minha irreverência, recolheram-se num canto do quarto e comungavam entre dentes, como se estivessem a deliberar mais uma sentença.
Só consegui perceber o que a cabra dizia, “vamos testa-la e leva-la àquele sitio onde se encontram os outros que ousaram desafiar-nos”.
Mandaram-me vestir uma bata e ordenaram-me para que os seguisse, no corredor não se via ninguém apenas homens iguais ao outro, vestidos de branco e portas em fileira numeradas.
Paramos em frente a uma sala que dizia, “sala de convívio”, sentia-se o cheiro nauseabundo vindo de dentro, o homem da bata branca trouxe mascaras para os imundos que corrompiam a carne inofensiva de tantos como eu.
Abriram a porta, mandaram-me entrar à frente, vi rostos de sílex, outros com feições apagadas pelo desespero como se fossem vegetais, os olhares vagueavam nas profundezas de um poço sem fim, cheios de escaras em feridas abertas, alguns comiam os dejectos que ejaculavam.
Fiquei pálida engoli as lágrimas, a revolta enrugava-me o vómito do nojo que me provocava a caridade daqueles animais que impunham a mão de Deus sobre aquela desumanidade atroz, reconheci alguns e lá estava o Joel o menino do nome proibido, enfiado num colete-de-forças tão desfigurado como os golpes profundos de uma víbora trinchada às postas.
Corri, mas foi barrada à porta pela besta, agarrou-me pelo braço e ordenou que me levassem de volta para o quarto.
Quando fui fechada no quarto, tremia compulsivamente, gritei as lágrimas sufocadas naquela sala, era aquele destino que me esperava também se continuasse a desafiar os órgãos supremos da perversão.
“Como era possível ocultar tanta malvadez? Quem era esta gente?”
Não podia acreditar que o mundo fosse todo assim, sabia que tinha que fazer alguma coisa mas que poderia uma menina de oito anos contra tanta falta de humanidade, tinha que tentar manter a minha sanidade equilibrada embora o meu desespero ainda estivesse em fase inicial, cada vez sentia mais vontade de morrer.
Não demoraram muito aparecer de novo no quarto, a irmã da maldade trazia umas roupas na mão, fui forçosamente obrigada a vestir-me rapidamente ali em frente aos selvagens que me comiam com o olhar. Já tudo me era indiferente desde que me levassem daquele sítio maldito, onde a morte nascia no olhar da inocência perdida de almas que não pediram para nascer.
A Besta olhou-me ávido e em seguida fez sinal a dois homens de bata branca, agarram-me pelos braços e encaminharam-me até à garagem, empurrando-me com força para dentro de uma ambulância reforçada com grades, obrigando-me a vestir o colete-de-forças, sentia-me uma prisioneira condenada à humilhação dos incógnitos. De seguida começa a desapertar o fecho das calças e enfia-me o pénis na boca soltando gargalhadas à medida que me forçava a cabeça com as mãos, tratava-me como uma puta espezinhada até se vir na minha boca, apertou-me os maxilares e obrigou-me a engolir os despojos da sua congratulação em prol dos serviços prestados. O vómito surgiu imediato mas ao mesmo tempo era forçada pelos cabelos a engoli-lo de novo, revirei os olhos, vi umas letras ofuscantes escritas a néon, “Clínica do Doutor Teotónio de Albuquerque”, acabando por perder os sentidos.
Fui acordada abruptamente pelo homem da bata branca que sustinha uma gaze embebida em álcool junto ao meu nariz, já sem o colete-de-forças, afinal não tinha tido um pesadelo, o animal de branco existia. Quando abriu a porta da ambulância vi o rosto da irmã Alzira, saltei de imediato para o chão abraçando-a num tremor intenso, as minhas pernas franzidas tremiam os meus olhos alagavam-se em lágrimas era a única pessoa naquela instituição que nos dava um pouco de afecto, que me transmitia segurança.
Abraçou-me deu-me um beijo elucidando-me que era normal sentirmos saudades de casa.
A irmã Alzira era a professora daquele covil, era ela que nos ensinava aprender a ler e a escrever, todas as aulas eram em função da doutrina religiosa não lhe davam permissão para que tivéssemos abordagem sobre outros temas ou disciplinas, às vezes dava-nos um cubinho de chocolate sem que ninguém soubesse, alegria era tanta, enchíamos-lhe o rosto rosado cheio de beijos.
Tive vontade de lhe contar o que me tinha acontecido, tudo desde o início mas sabia que não podia, o medo era maior que as palavras, as feridas, as dores, não, não podia confiar em ninguém.
Não tinha passado muito tempo aquando à entrada do parque se aproxima um carro enorme de vidros foscos, quando as portas se abriram, uns sapatos de verniz preto trouxeram-me o olhar vazio daqueles meninos fechados num curral tão surreal que nem as imagens proferidas do inferno se aproximavam de tão forte bestialidade. A Besta e os dois padroeiros do santíssimo sacramento olharam a irmã Alzira de soslaio e dirigiram-se para a secretaria do orfanato.
Recolhi-me à camarata em vez de acompanhar a irmã Alzira, era hora do almoço mas o meu estômago estava tão embrulhado como uma folha de jornal desfeita, precisava de me confessar à solidão.
Mathilde Gonzalez
Pseudónimo de Conceição Bernardino
Registado no IGAC
Mathilde Gonzalez - Pseudónimo literário de Conceição Bernardino