Crónicas : 

Antípodas

 
Tenho um milhão de anos de idade, e não é fácil para mim carregar tanta história em tão pouco tempo de vida. Reflito sobre tudo que sou, que fui, que nunca vivi, e percebo quão grande é minha mágoa; quão grande é minha dor diante desse silêncio que sempre me acorda dos meus sonhos mais reais; daqueles momentos em que creio que a vida é eterna; dos dias em que tenho tudo nas mãos, e que depois quando passam e vão embora, vejo como é inútil a maior das felicidades. Inúteis como sonhar em ter impérios, castelos, ou realmente tê-los.
Sou desesperado, vazio, e tenho muitas palavras. Assusta-me estar vivo muito mais do que a morte. A morte é libertação, saída, horário de finalmente descansar após tanta dor e desilusão. Horário este sem horas, sem minutos, sem tempo, horário além do horário, tempo sem tempo, vácuo pleno.
A verdadeira salvação é a morte; o paraíso é a morte, inferno é viver.
Intuo verdades universais enquanto escrevo, e não é fácil para mim afastar-me deste estado de transe e magnetismo por muito tempo. Ás vezes penso e concluo que só existo aqui, enquanto me perco neste labirinto, sem fio ou Ariadne que me espere do lado de fora, sem poeta que cante meus feitos de Teseu melancólico.
O mundo aqui é completamente feito de incompletudes, e onde pousa uma palavra, dois milhões voam para outro lugar.
Sou antípoda de mim, só existo no meu lado oposto. Escrever é encontrar-me com meu eu demoníaco e sagrado; é abraçar-me, tendo a mesma sensação de já conhecer alguém nunca antes visto, ou então de amar um desconhecido ao primeiro olhar; é o mesmo que morrer, e me é tão insatisfatória esta morte, que necessito de dez mil delas para acalmar esta pressa que faz meus dedos e pernas não conseguirem parar no lugar, como ponteiros de relógio que não conseguem descansar, tornando-me assim máquina, acessório, sentido o gosto das engrenagens e óleos na língua.
Não quero ser para sempre, não! Quero ser fugaz, quero ser como esse vento que me toca agora, como essa inspiração fraca e leve que me faz escrever essa prosa inútil, esses sentimentos em letras, literatura da minha vida, que como toda literatura, é pequena diante do mais simples olhar fixo.
Quão curta é a inspiração, quão breve é a felicidade, quão inesperado é o milagre. Tudo que tenho são milhões de dias para viver, para quando menos esperar, ser surpreendido por um milhão de estrelas no céu, um milhão de céus nos olhos de quem já amei, um milhão de milhões de milhões de sentimentos no peito.
A única liberdade é o amor. O amor, esse algo que ninguém sabe o que é, mas que todos dizem já terem sentido. É a falta de sentido mais plena de significados, é o além da razão, mais forte que a própria força, poesia possível apenas para a sensibilidade, música do universo, sussurro de Deus, melodia para anjos escrita pelo mais maldito e sentimental dos mortais.
Se eu pudesse trocava tudo que nunca tive por um segundo a mais de amor, de amor e ilusão. Morrer de amor seria a melhor das mortes. Morrer de amor para se livrar de impostos e rotinas, morrer de amor para se livrar de discursos e políticas, para se livrar da tecnologia e dos selvagens.
Divago e escrevo, os pensamentos que me vêm são maiores do que minha possibilidade de pensar, e uso apenas aqueles que mais se adaptam à minha mediocridade de raciocínio, apenas aqueles que posso focalizar com meus olhos, pois certos tipos de cores não são possíveis de serem vistas, certos tipos de sons não são possíveis de serem ouvidos, e para transpôr esse tipo de limitações, o que posso, mesmo sem conseguir sucesso, é descrever sem descrever, falar sem falar, e quanto mais digo, mais me afasto, e quanto mais longe estou de ser entendido, mais próximo estou de ser sentido.
E ser sentido sempre me bastou.
Por isso nunca escrevi, nunca usei palavras, rimas, alfabetos. Sempre estive ausente do texto, olhando atentamente junto com o leitor, tentando ser ele enquanto lê, fazendo dessa comunhão meu único álibi, minha única verdade. Transformando-nos mutuamente, nesse encontro, em um só ser, tentando afastar-nos mais e mais do estar juntos, até o ponto em que os antípodas se tocam, em que os distantes tornam-se tão íntimos como o sol e a lua. E tudo se completa e chega ao seu termo nessa ausência de ausentes, nessas palavras alheias ao dicionário, nessas imagens pálidas como sonhos e miragens, nesses corpos unidos mesmo que desconhecidos.

 
Autor
ferlumbras
 
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Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 14/04/2012 15:26  Atualizado: 14/04/2012 15:26
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 Re: Antípodas
Eu li junto.
Um abraço
Roque