Prosas Poéticas : 

Talvez me arrume

 
Acordo para lá das horas, quando o dia já se viveu pela metade.
Uma espécie de caos instala-se em mim, invade-me as têmporas, cega-me os olhos, e rouba-me a harmonia em que sempre me protejo, como num casulo vazio de dúvidas.
Não sei o que me preocupa e, no entanto, tenho a mente ocupada de palavras, como se uma rebelião se anunciasse dentro do meu cérebro. Tropeço em mim e, na desordem, procuro organizar este amontoado de pensamentos que me interrogam, desarrumando as coisas certas. Olho-me ao espelho e não gosto de me ver aqui. Olho o meu corpo e não entendo, o que faço eu, regressada em atraso, a este espaço que me é cubículo de palavras. Queria não o ter habitado. Queria não ter voltado. Queria ser livre para me poder estender sobre as nuvens e deixar tombar, na terra ainda humedecida pelo choro da noite, este peso que me rouba o movimento espontâneo de mim mesma, sobre a superfície corpórea das coisas, onde me penso. Onde sou. Onde penso que sou.
Mas a terra já secou, na metade do dia que deixei morrer de inutilidade.
Escrevo.
Escolho ver-me no desenho das letras. O sol já vai alto, e talvez seja mais fácil descobrir na forma das minhas sombras, a mesquinhez da minha existência, e render-me assim, à grandeza do verbo que vive da eternidade do tempo em que se soletra, nos olhos de alguém. Escrevendo, talvez encontre utilidade nas mãos agarradas a estes braços que já se saturaram de mim, e solte dos dedos, uma espécie de ânsia de voar, aprisionada por esta minha natureza solitária. Escrevendo, talvez me arrume junto do entendimento das coisas inexplicáveis e, talvez, quem sabe, alguém me veja por dentro.



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Maria João de Carvalho Martins
2012
 
Autor
MjoãoMartins
 
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