- Mas como você não se lembra dele?
Espantei-me prontamente com a exclamação de que meu amigo não mais se recordava de Ulisses, homem, diria eu, inesquecível para qualquer um que já houvera tido oportunidade de com ele conviver.
- Não lembro, nem sei como era sua feição, nem que ideias tinha, muito menos que contava histórias! Por que te espantas tanto com esse fato?
Ora, ele não poderia compreender, nem tive eu paciência de explicar esse tipo de profundidade que só aborrece grande parte das pessoas. Afinal, ter sentimentos e pensamentos avessos à normalidade nunca anima conversa alguma, no máximo serve para a literatura. Fiz então de conta de que nada de especial se passara.
Algo em mim, porém, havia despertado; um pensamento niilista misturado a uma sensação de milagre assaltava-me; como dizer isso senão através de oxímoros?
Tal pensar era simples: nunca imaginei que alguém poderia esquecer de Ulisses... Como isso era possível? De fato, meu amigo era muito jovem quando com ele teve contato. De toda forma, meu pensamento não conseguia aceitar que esta cena que agora vos narro de fato ocorreu! Estava eu descrente desse fato concreto! Haveriam os anos disto também fazer-me duvidar?
Ulisses havia sido um homem, no meu modo de ver, especial, diferenciado, único; desses que não se veem todo dia por aí, que não se veem estampados em revistas ou coisas do tipo, pela extrema beleza ou vulgaridade.
Ele tinha uma alma maior do que as linhas deste escrito, não cabendo nem mesmo em palavras, extrapolando os limites mesmo do dizer; ele era, simplesmente era, e esse ser nele adquiria letra maiúscula! Sim! Falar de Ulisses Era, e ainda o É, para mim, falar de um Ser com maiúsculas!
Ulisses, todavia, havia falecido há algum tempo, sete anos talvez, e ninguém mais recordava-se de seu rosto, ninguém mais lembrava os contornos de sua face, e para ser-lhes sincero, eu também não mais o recordava.
Lembro-me, ao menos, que tinha ele traços do mais fino pincel, expressava-se de forma a causar forte impressão em qualquer um que o ouvisse. Tinha também um sorriso franco e aberto. E absolutamente, o que mais lhe caracterizava a personalidade era seu jeito mágico e encantador de narrar histórias.
Como havia meu amigo esquecido de Ulisses? Como eu havia podido ter esquecido os traços de seu rosto?
Nem fotografias possuíamos dele, e seu único retrato possível era o que havia sido feito pela natureza na face de seu primeiro filho.
Para onde foi Ulisses? Para onde fugiram seus olhos que tudo diziam? Seria a vida apenas um constante esquecer de vidas que nunca mais se repetirão, ou que sempre se repetem, sem ninguém poder delas recordar?
Assustei-me também por lembrar que muitas pessoas com quem convivi, por quem me apaixonei, não deixaram mais do que impressões em minha alma: o amor que eu sentia; de resto, sabia que nem mais seus rostos existiam em minha mente.
- Ei, acorda! O que houve, não vai falar mais nada? Sinto que falo com os ares! - Dizia-me meu amigo, fitando-me admirado.
- Ah, sim, claro! Desculpe-me a distração... Vieram-me divagações à cabeça! Veja como sou distraído! Mas, em verdade, o que estávamos mesmo a conversar?