Senhor,
Vem ter comigo
No silêncio da sala vazia
De carteiras mudas que os dedos trigueiros dos meninos
Inconscientemente
Polvilharam de tinta…
Não olhes as manchas azuis, Senhor!
Tu SABES
Que os dedos criminosos
Já foram castigados
E a tinta foi raspada do chão…
Mas, Senhor,
Dentro de mim
Ficou a ressoar
O choro convulso e magoado
Dum que talvez merecesse o meu perdão
E o não teve…
Vem ter comigo,
Depois de um dia que podia ser cheio
E foi talvez vazio
E triste
E apagado
E tão insatisfeito como eu…
( - Ai esta fome de perfurar o Céu!...-)
Não apenas
Porque, pedagogicamente,
Não se deve bater,
Mas, sim,
Porque não há nada tão inconsciente
Como uns dedos inquietos de menino
Metidos num tinteiro…
Vem ter comigo,
No silêncio da sala vazia,
Agora,
Que eles foram a cantar caminho fora
E me deixaram só
Com a lembrança do choro magoado
A conversar
Contigo meia hora!...
Amanhã,
Senhor,
Não FIQUES PREGADO a tarde inteira.
VEM.
E toma o teu lugar…
Quando em coro rezarmos,
E tudo for unção,
Dá-me a força enorme e luminosa
De começar o meu trabalho
De olhos a sorrir,
Apesar das manchas azuis
A sombrear o chão…
Apesar dos fatos rotos
( - Rotos e mal cheirosos…)
Que a chuva lava
E o sol enxuga levemente…
De olhos a sorrir,
Apesar de tantas faces magras
E olhos transparentes
A perguntar os «quês»
De coisas sem sentido…
E às vezes, Senhor,
Às vezes,
Apesar de repetir
Que as mãos dos meninos são de neve
E vê-las junto de mim
Vestidinhas de negro…
Vem ter comigo, Senhor!
Mas, VEM,
Principalmente,
Quando a Ana ciciar a lição
Naquela voz pausada
De quem sabe e não se quer ralar…
Vem, Senhor!
Mas, VEM,
Principalmente,
Quando a paciência disser «sim» ao cansaço
E eu erguer o braço
E me esquecer
Que TU ESTÁS aí,
Silenciosamente,
A VER…
Vem
Quando eu explicar as tais frações
E as outras lições
Que fazem bocejar…
Vem ter comigo, Senhor,
No silencio da sala vazia,
Agora, que eles foram a cantar caminho fora
E ENSINA-ME
Nesta quietude das carteiras mortas
Que as almas são mais,
Muito mais importantes
Que os ditados sujos
Que as contas erradas
Que os olhos parados
Que os fatinhos rotos
(- Rotos e mal cheirosos!- )
Que as mãozitas negras
Que as manchas de tinta já raspadas…
Vem ter comigo
No silêncio da sala vazia
De carteiras mudas
E que eu decore,
Não como a Rosa decora a tabuada,
( - Ela apenas consegue decorar!- )
A frase escrita a verde
Nas folhas brancas do meu quotidiano:
- É preciso saber PERSEVERAR!!!...
Maria Helena Amaro
In, «Maria Mãe», 1973
http://mariahelenaamaro.blogspot.com/2012/01/oracao.html
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