Poemas : 

Pipa

 
Se a lesta pipa passar em frente,
Num dia claro, da tua janela
Com franca vista do pôr-do-sol,
Estica o braço para pegá-la,
Mas não a apare no pleno vôo;
Sente a rabiola passar apenas
Pelos teus dedos, ligeira e breve,
Pois se sustenta no ar tão somente
Por brisa e linha fina e volúvel.
E se outra vez o acaso do vento,
Pela janela do apartamento
Em que tu moras, encaminhá-la,
Perceba bem que já não há linha
Que a leve leve por estes céus,
Sem deus ou nuvens a organizá-los;
Somente um vento que forte e doido
Mexe febril em toda a paisagem
E a pipa arroja contra a janela
De um edifício que muito lembra
Adamastor no silêncio grave
Do aço, concreto, viga e fastio.
Portanto, deixe que adentre anônima,
Sem epopéia, cantor ou fama:
Ave abatida, louca avoada,
Em desafio contra fachada
De mil janelas sempre fechadas,
No breve instante de um vento leste.


 
Autor
Felipe Mendonça
 
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