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mors omni aetate communis est

 
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não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


o mar traz no cimo das ondas gaivotas loucas. todas loucas. até aquele cinzenta que vive dentro do meu único pulmão capaz de transformar a desordem em confiança – este pulmão comprei-o a um fidalgo que viaja dentro do corpo desde o dia que descobri sofrimento que nunca iria compreender – é um homem importante. diferente. alto. distinto. elegante. usa cartola. luvas de pelica. um lenço branco recortado cai-lhe do bolso do casaco negro de caxemira. emparelha com a camisa branca. engomada e de pura seda. na extremidade das mangas uns botões de punho em ouro com caveiras encastradas. no dedo anelar um anel igual. enorme. com a mesma caveira em alto relevo. serve para encerrar as cartas confidenciais com lacre da vida que consome. nunca percebi para quem escreve. talvez um familiar a viver nalgum local remoto que eu ainda desconheça – caminha amarrado a uma bengala que serve apenas para marcar os passos. sempre certos. ritmados. como se de música se tratasse. talvez marcha militar. nem depressa nem devagar. as pernas andam apenas porque andam. movimento de quem nunca está parado em local nenhum. imagino que anda para não estar parado. talvez não goste de nenhuma parte do corpo que o alberga. ou então movimenta-se para o ajudar a manter as costas direitas. sempre perpendiculares ao sentido de tudo que me passa pela cabeça. como os pêndulos dos relógios que preenchem paredes vazias de tempo que anda mesmo sem ponteiros. os sapatos. ah. os sapatos de atacadores brilham. não sei se são novos ou engraxados. mas brilham. brilham como nada do que tenho brilha. brilham como os olhos dos meus amigos. brilham como as mãos dos que me cumprimentam. brilham como os castiçais que seguram velas que teimam em manter acesso o que já morreu. brilham como as palavras escritas nas paredes em que me encosto para descansar os pés que me suportam – este cavalheiro. importante continuo a pensar eu. anda sempre de um lado para o outro. um dia aqui. outro ali. mas sempre a sugar o ar que desinteressadamente entra pela boca aos gritos – este “gentlemen” creio que deve ser de descendência britânica. nunca se atrasa. àquela hora ali está. batendo ritmadamente a sua bengala num órgão qualquer – agora percebo que a dor não me pertence. nem a vida – um dia faço alguma coisa que não goste e zás. pancada final – acredito que é para isso que vive dentro do meu único pulmão – um dia. irritado. diz: o tempo acabou –


* a morte não poupa ninguém — mors omni aetate communis est
 
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sampaiorego
 
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Enviado por Tópico
Sterea
Publicado: 12/01/2012 01:39  Atualizado: 12/01/2012 01:39
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 Re: mors omni aetate communis est
no entretempo... vamos entretendo o senhor do salão com jogos que vamos aprendendo a viciar. ou com teimosias que nunca nos ensinaram a perder. ou com palavras que sempre é tempo de aprender. ou com maneiras que nunca nos ensinaram a saber. ou com um sorriso de insolência, simplesmente.

aos amigos, a gente vai dando beijos.


Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 13/01/2012 01:19  Atualizado: 13/01/2012 01:19
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 Re: mors omni aetate communis est
nem a morte nem a sombra...
gosto e como gosto de te ler. bj