Meu bonde que aponta além
Já vai passando bem antes
Do horário de que é refém.
Vou correndo pela via,
Com ambos os pés feridos
Por calos de mais um dia,
Ouvindo o rumor dos corpos
Proliferando-se anônimos,
Nesta cidade de mortos!
Mas, corro e chego de vez
Passando em cima das covas
Dos mortos sem ano ou mês,
Dos que vão pelas calçadas,
Passando pelos semáforos,
Entre sombras apressadas.
Vou pela rua bem vivo
Sentindo no peito ofego
Coração nunca cativo,
Pisando no asfalto duro,
Rosas fanadas num chão
Só de ratos em monturo,
Pisando essa rataria
Que, contra tanta miséria,
De certo, nada faria.
População que consente
Que o tempo todo lhe mintam,
Sempre farta e tão carente.
Sim! O bonde vou pegar
Junto a Prometeus e Sísifos,
Que nunca aceitam estar
Escravos da profissão,
Presos às roupas e à classe
Da falta e da solidão;
Que nunca aceitam estar
Como os que voltam pra casa,
Bovinos, de par em par.
Gente que pensa que assento
Terá sempre garantido,
Mas que é folha, e leva o vento,
Gente que vagueia a esmo,
Pelos carris do vagão
Carregado de si mesmo,
Sem ver que vamos tomar
Dos mortos ainda em vida
Nosso direito e lugar!
Daqueles que em cemitério
Transformaram suas vidas
Sem decifrar-lhe o mistério.