Insónia rendilhada mas, frutuosa
Tinha acabado de me deitar
E para espanto meu
Não conseguindo pegar no sono
Um grande estendal na minha mente apareceu
Mas que grande turbilhão
Toquei numa das peças, puxei e, o que é que encontrei?
Letras, palavras, sílabas, verbos, versos, nomes
Logo quis encetar um exercício mas, parei!
No remoínho das imagens projectadas
Tentado a pegar numa das pontas
Avançava, recuava, outras imagens surgiam
Vencido, confuso, fazia as minhas contas
Uma vez, outra vez, os cenários repetiam-se
Voltava atrás, reconstruía as imagens
Comparava com outras já antes vistas
Insistia na sua percepção e não terminavam as viagens
Até que decidi pôr fim a este labirinto
Mas, fazê-lo, foi tarefa não muito convencional
Concentrei-me noutros pontos do meu ser
Consegui, desloquei energias e apliquei-lhe um golpe fatal
Pois, já reconfortado, contando com o voltar do sono
Não é que, novamente, regressa o estendal
Que faço, penso eu, para armadilhar esta ratoeira
Assim, seguramente, vou dormir muito mal
Sem meios para ordenar, acedi então entrar no jogo
Espera lá, disse-me uma voz lá de muito longe
Tu não és homem para que te arrastem ou influenciem
Toma as rédeas, não te conformes como um monge
Aí, entendi que o meu terreno era a luta
Esbocei um plano para arrumar com o painel
Calculei, coloquei arrumadinhas as peças no tabuleiro
Começou a ficar tudo direitinho mas, fartei-me e pus tudo a granel
Entretanto, adormeci e foram-se as figuras
Não medi o tempo do apagão
Quando desperto fiquei de novo
Senti outro grande estremeção
Recusei experimentar um cenário diferente
Não havendo forma do sono almejar
Então, mais valia projectar o já visto
Levantei-me, as formas do meu sonho vou relatar
Era uma cidade construída só para as palavras
Ali, tudo se dizia e em grandes obras se reproduzia
Havia de tudo, de figuras enormes até aos disformes
Vou já avançar e descrever com alguma ironia
Para os maiores, os enormes que impressionam
Estava reservada a Alameda dos Eternos Pensadores
Com grandes colunas, muitos arcos e palmeiras
Podiam ver-se as obras de grandes poetas e prosadores
Num só olhar podiam ver-se tantos que são nossos
Como Camões,Pessoa,Ary,Saramago,O’Neill,Gedeão,
Mello Breyner,Cunhal,Namora,Redol,Camilo,Almada,
Florbela,Régio,Alegre,Aleixo,Natália,Bocage,Torga,Cortesão
Prosseguindo a caminhada, outra sinalética
Estávamos na Praça dos Novos Escritores
E lá se viam tantos, muitos ainda desconhecidos
Mas, com afirmação e obra, muito prometedores
Voltando para a esquerda, numa nova placa, lia-se
Travessa dos Alfarrabistas, com obras para coleccionadores
Muitas peças de museu e algumas oportunidades
Também obras ao metro, para expositores
Uma chamada de atenção aconselhava voltar à direita
Só porque, em frente, estava a Rua dos Pecados
Lá, entregues ao acaso, para quem quisesse ver
Havia um pouco de tudo, bêbedos e outros marados
Pois claro, seguindo para a direita, era o quê?
A grande Rua dos Fadistas e Guitarristas
Logo aparecia a Amália, Marceneiro, Paredes,
E um grande número dos nossos bairristas
Sem canseiras porque há que ver tudo
Seguindo a direito, aparece o Beco dos Namorados
Muitas lembranças, algumas bem ousadas
E claro, uns tantos grupinhos bem apaixonados
Mais à frente outra grande surpresa
O Solar das Tertúlias com eunucos ordeiros
Aí se encontravam figuras polémicas
Vejam lá, só para recordar, uma delas era o Medeiros
Havia um moderador, a conversa era o Jardim,
Com tantos interlocutores, daqueles que falam sem fim
Na assistência, eis que surgiu um grande cromo
À laia do não concordo, cantarolava o bailinho e o alecrim
De imediato, viram-se todos os olhares para o estranho ali presente
O homem do micro faz o gesto para o chamar, era acontecimento
Quem disto não gostou foi um dos oradores que, acto contínuo
Ripostou, dizendo: retiro-me, não aceito interrupções, foi o momento!
Depois, para completar a sequência
Surge a Ruela das Frases Que Ficaram
Então lá aparecem faixas, umas quantas, algo compridas
Bem seguras e com flores, algumas que já mirraram
Olhe que não Sr. Doutor, olhe que não!
Soares é fixe!
É só fumaça, é só fumaça!
O povo não tem medo, Pinheiro de Azevedo!
Eu nunca me engano e raramente tenho dúvidas!
Um milhão centi…um bilião quinh…um trilião…ih,nh,nh…!
É como bater num bebé que está na incubadora…
Ora, meus senhores, há mais vida para além do deficit!
Sim é verdade, ofereceu-me uma caixa de robalos…
A dívida soberana não é para ser paga!
Ah, também lá se encontrava uma foto antiga
Em primeiro plano o Almirante sem medo
Na sua sombra o Soares fazendo extensões labiais
Há quem diga que conferia o discurso do Azevedo
Descendo umas escadinhas ladeadas de paredes sombrias
Deparo-me com estranhos objectos
Daqueles que valem para malabarismos virtuais
Eram tantos e tão diversos, até havia horrendos dejectos
Do Benfica é que, nada se avistou, nem um standezinho
Nem a última edição de preservativos apareceu
Desta vez foi total a desgraça
Para os aficcionados, nem Jesus surpreendeu
E agora, por esta é que não esperava
Sem me aperceber, encontrava-me entre sobreiros
Olhei em redor procurando uma placa e, lá estava,
Rua projectada à Azinhaga dos Engenheiros
Qual era o acontecimento aqui
Não, não eram os verdadeiros
Eram sim mas, os dos engenhos
Aqueles que comem e inventam vespeiros
Para compôr o ramalhete, não podia deixar de ser
Bem encapotado, surge um compadre muito atarracado
Confiou-nos as suas bizarras tramóias
E de como, com humor se despede o aperaltado
Confessou que em toda a sua vida, apenas um o enganou
Veja-se lá de onde viera, de Lisboa? Não, da Beira-Serra!
Era um fidalgotezito que se julgava grande esperto
Que chegado à ribalta, o diploma arrancou no meio de muita berra
Já quase na saída, lá bem num cantinho
O que vou encontrar, o outro lado da cultura
A conhecida barraquinha do Mata-a-fome
Bem abastecida sim senhor, grande moldura
Ele, eram torresmos, couratos e bifanas
Ginginha, branco e tinto à discrição
Algumas bolas de Berlim e farturas
E mesmo pão com chouriço e com este no pão
Sem cerimónias, com o percurso completo
Resta-me aconchegar a pança afinando o palato para engolir
Saia uma bifana das grandes e um penalti de tinto
É pra já, diz o Mata-a-fome, se não chegar, é só pedir!
15/12/2011
Roque Soares