Capítulo II
1
Do lado de dentro da padaria, no lugar em que sempre sentava, Doralice Guimarães observava seus novos inquilinos. Precisava conversar com eles, identificar se poderiam meter-se no seu caminho e atrapalhar seus planos. Porque nada, nem ninguém a impediria de cumprir sua missão em Engenho Novo.
Ela não recepcionou pessoalmente os forasteiros porque passou o dia fora. Desde sua chegada, seis meses antes, teve de manter a fachada de uma mulher sozinha tentando ganhar a vida de uma maneira honesta.Primeiro, teve que comprar aquele casarão caindo aos pedaços ao preço de um novo. depois vieram as reformas, e só nas últimas semanas pôde dar início às suas investigações. Não achou referência nos jornais locais sobre aquele dia. Nem havia nada registrado na polícia. Nem mesmo sobre o roubo dos diamantes, que foi feita pela governanta do seu primo.
Foi na noite passada que ela conseguiu uma pista_ embora não segura_ de alguém que poderia lhe tirar algumas dúvidas. Não sabia se padre João ainda possuía um mínimo de lucidez. Mas, ele lhe disse que só uma pessoa poderia lhe mostrar o “caminho dos diamantes”, ela não soube como ele poderia saber, talvez tenha sido um dos poucos que ficaram do lado do seu tio, talvez por isso o expulsaram de sua igreja e a trancaram para sempre. Não gostava de passar pelo Monte Santo, morro sobre o qual a igreja em estilo neoclássico fora construída. Havia algo pesado rondando aquele lugar, às vezes como que atraída por um magnetismo ela a observava. As duas torres com seus vitrais quadrados pareciam olhos, acusadores, quase podiam ouvir uma voz sussurrar-lhe ao ouvido:
“Sei o que quer, não deixarei achá-los”.
Dora sempre tremia. Era muito estranho uma cidade provinciana sem uma igreja funcionando. Corriam rumores de que o coronel Antônio Cândido se desentendera com o bispo e foi assim que começou a trajetória da decadência do padre João e seu séqüito. E como todos sabiam, Antônio Cândido era o “manda chuva” e todos o temiam, não seria difícil entender aquela onda de “agnostismos” na cidade. Para Doar não importava. Não era dada à religião mesmo. Mas, a única pista que tinha era aquela do padre louco. Tinha que arriscar.
A mulher fora um dia conhecida como Diana Benzedeira, agora vivia recolhida nos limites da cidade. Num lugar onde não acreditavam mais em Deus, não se acreditava também no Diabo e seus ardis, pelo menos, era assim que pensava Doralice. Saiu da padaria e foi direto para o seu carro, passaria no posto para encher o tanque de gasolina. Não podia correr o risco de ficar parada no meio do nada, e à noite! Não gostava do silêncio sepulcral que tomava conta de Engenho Novo de pois que o sol se punha.
2
Pedro foi direto para o canavial da fazenda Aguardente. Era tempo de cortar a cana, ele tinha esperança de encontrar alguém conhecido e amigável disposto a ajudá-lo. Havia muitos jovens ali, com os rostos cobertos com camisas de algodão e facões afiados nas mãos. Pedro começava a desanimar quando alguém colocou a mão sobre seu ombro. Assustado, Pedro virou-se e suspirou quando reconheceu a velha cozinheira do casarão onde morava Rebeca. Era Gertrudes, devia ter quase uns setenta anos, mas sua aparência era de alguém uns quinze anos mais jovem.
__ É ocê, Pedrinho?__ ela apertou os olhos e quando pareceu reconhecê-lo puxou-o pela mão para longe__ menino, cê qué morrer mermo, se coronel Candinho te vê, ele te mata, mata sim, inda hoje guarda ódio de ti.
Pedro não ligou para a ameaça. Estava muito feliz por encontrar um velho conhecido. No entanto, a velha nem deixou ele abrir a boca.
__ Num adianta Pedrinho, que a menina rebeca se mato__ Pedro arregalou os olhos, incrédulo,mas Gertrudes não deu trégua__ Se manda, vai imbora dessa cidade, isso aqui um é maisi lugar pra ti, vai Pedrinho, vai!__ ela o empurrou até a cerca__ Pru teu bem, vai imbora.
Ele ainda ficou parado, abismado, não sabia o que pensar. Ouvira direito? Rebeca se matou? Por quê? Deus! Ela amava tanto a vida! Ela era a coisa mais linda daquela cidade horrível. Agora estava morta... Não a veria nunca... Nunca mais!
Entrou no carro e foi dirigindo. Mesmo inconsciente, com as lembranças de Rebeca invadindo sua mente, Pedro tomou a direção do cemitério. Tinha que ver, tinha que ter a prova real do que Gertrudes falara.
3
José Inocêncio nunca imaginou que aquilo fosse possível.
__ Foi a seca. Faz tempo que não chove. Nóis fizemo queimada pra podé brocá a terra e plantá. Maisi não nasceu nada. Seu tio cismô de plantá arroisi e agora nem cana num qué crescê.
Até aonde a vista podia alcançar, só havia um amarelo ressequido de vegetação morta. Como se Inocêncio tivesse em plena caatinga. O solo estava rachado e aquilo era, numa palavra, inconcebível. Devia ter sido algum tipo de veneno porque ele passara por uma outra fazenda e viu uma vegetação verde e viçosa.
__ Santo Deus! O que aconteceu aqui? Isto é pior que ruína. É calamitoso, o que foi que vocês colocaram aqui, que roubou toda a vitalidade desse solo?
O capataz olhou-o tenazmente e respondeu:
__ Foi como eu disse. Faz tempo que não chove.
4
Ela consultou o relógio. Já era uma hora da tarde. Podia avistar uma casinha de barro com teto de palha. Acelerou mais um pouco. Estacionou próximo à casa, não soube porque. Mas, sentia medo. Algumas galinhas ciscavam na frente da casa, havia uma porca imensa se lambuzando na lama junto com seus filhotes. Dora aproximou-se mais da porta da frente, inspirou fundo e bateu palmas.
Esperava encontrar uma velha corcunda com o nariz adunco. Mas Diana não era assim. Era baixinha e muito magra, apesar da idade avançada, seu rosto ainda tinha um pouco de beleza. Era um rosto sofrido, mas sua voz era grave, ameaçadora.
__ O que procura moça? Não acredito que seja uma reza porque faz tempo que essa cidade deu as costas pra Deus faz tempo!
Dora imaginou até que ponto tratava-se de uma fanática religiosa. Não podia negar que a velha senhora tinha razão, mas não era hora de pensar naquilo.
__ Informaram-me que a senhora conheceu Matias Soares Guimarães. Queria algumas informações sobre ele...
A mulher espremeu os olhos e aproximou-se.
__ É a prima dele?
Dora sorriu por dentro. Ninguém sabia que Matias tinha parentes vivos e se aquela mulher tinha esse conhecimento, é porque um dia ele confiou nela.
__ Ele me disse que ia chegar. Quer os diamantes, mas vou logo avisando não estão comigo, só o morto sabe onde estão, só ele pode mostrar o caminho.
A mulher era louca. Também, o que podia esperar de uma pessoa vivendo naquela solidão, cercada de superstição religiosa?
__ Pensa que sou louca, mas seu primo sabia que tinha muita gente de olho no tesouro dele. Quando voltou da última viagem, estava com as mãos abanado. Aquele povo que invadiu a casa dele nunca achou nada porque ele passou a perna neles. Era esperto, mas foi bobo em voltar.
Talvez gostasse demais daquela casa. Matias era muito apegado ao que era dele.
__Escondeu os diamantes na cidade em algum lugar, e tem que acreditar que ele vai mostrar o caminho, quando acreditar que é possível, vai sonhar três noites seguidas, o mesmo sonho, com o lugar exato onde os diamantes estão escondidos.
A mulher silenciou e ficou olhando para Dora. Sabia que a moça não acreditou numa só palavra.
Era bobagem. Tudo besteira. Sonhar com o mapa do tesouro. Aquilo não era um capítulo da ilha do tesouro. Ora! Perdeu seu tempo, mas não ia tratar mal aquela mulher, era já velha e com certeza e com certeza estava ficando esclerosada.
__ Muito obrigada. Vou para casa e esperar pelos sonhos.
Diana sorriu condescendente e entrou no seu barraco. Era um único cômodo. Cheio de imagens de São Cristóvão e Nossa Senhora. Pediria a segurança daquela moça. Ela não podia imaginar o perigo estava na cidade e não naquele fim de mundo. Se pelo menos acreditasse. Poderia lhe entregar um crucifixo e fazer uma oração para fechar seu corpo contra o mal que tomou conta de Engenho Novo.
Dora ainda ficou parada olhando para o barraco. Não sentia mais temor, havia certo bucolismo naquele recanto. Muito diferente da sensação que sentia quando passava pelo caminho da fazenda Aguardente ou mesmo na cidade. Olhou novamente para as horas, já era quase duas, chegaria perto das cinco. E o dia estava escurecendo rápido naquela época do ano.
5
Havia alguém chorando no túmulo de Rebeca. Ela teve um enterro católico, mesmo sendo suicida. Era estranho. A moça estava de joelhos, as mãos enterradas no rosto. Cabelos negros caíam nas costas, usava um alvo vestido de algodão sem mangas.
Pedro aproximou-se e sentiu algo que pareceu um soco no estômago. Algo foi subindo pela faringe e ele se curvou, sentiu como se garras esmagassem sua garganta, os olhos arderam. Vencido, caiu de joelhos e chorou desconsoladamente.
Como poderia imaginar que Rebeca cometera aquele desatino?Ela podia ter sofrido muito, mas tirar a própria vida? Não!
__ A culpa não é sua. __ ouviu uma voz amargurada e ao mesmo tempo doce, da moça, ergueu o olhar e assustou-se com as feições dela, era assustadoramente parecida com Rebeca, mas estava terrivelmente pálida. Quase translúcida sob aquele sol de quatro horas.
Só podia ser Rute. Lembrava-se dela e como Rebeca queria protegê-la. Só o fato de amar muito a irmã era o suficiente para quere continuar vivendo.
__ Sabe quem sou eu?__ ele quis saber se Antônio Cândido já sabia da sua presença. Talvez Raquel não se lembrasse dele, só o viu uma vez e tinha apenas nove anos.
__ Sim. Ninguém vem aqui visitar a Bec, só eu. Ninguém a pranteou como eu, nem mesmo papai. Ele nem se arrependeu do que fez. Devia ter fugido com ela. Mas, mesmo assim, na foi culpa sua.
Sim. Ela poderia dizer quantas vezes quisesse, mas ele nunca mais dormiria em paz. Foi um covarde.
__ Pelo menos, deram á ela um enterro católico__ falou para si mesmo.
__ Ela não se suicidou__ Pedro encarou a jovem de olhara vazios, ela voltou-se para a lápide enquanto falava__ Ela foi morrendo aos poucos, definhando em cima de sua cama. Não comia, não dormia, só ficava na sacada olhando para o horizonte. Um dia ela me disse que tinha decidido reagir, que se você não pudesse ir até ela, ela te acharia. Eu a ajudei a fugir. Mas, naquela noite choveu, choveu demais, de manhã alguém gritou pelo papai. Era um lavrador que tinha encontrado Rebeca perto do canavial. Ela estava encharcada e tremia muito. Estava com febre. Ela estava com pneumonia. Os remédios não fizeram efeito, o médico disse que seu organismo estava muito debilitado.
Pedro olhou novamente para Raquel. Não pôde fazer nada por Rebeca, mas ainda podia ajudar a irmã dela. Era evidente que ela precisava de ajuda.
__ E o que faz tão longe de casa?
Ela sorriu sem graça.
__ Aquela não é mais mina casa. Sai de lá pra sempre, não podia mais viver com papai__ ela mostrou os pulsos enfaixados__ Ela não vai mais me machucar.
Pedro sentiu outro golpe no estômago só em imaginar o que aquele homem fizera com a filha.
__ Vem comigo então. Deixa eu te ajudar, pela Rebeca.. Vamos embora daqui, não precisa viver ao léu.
Ela recusou com um aceno.
__ Não entende. Vim pra ficar com a Bec, preciso da paz que ela me dá.
__ Não! Como pode viver assim sem um lar?
Ela levantou-se e foi se afastando dele.
__ Há sempre casas vazias onde eu posso me abrigar. Não se preocupe comigo, agora estou bem. É você que tem que se cuidar. Vá embora daqui o mais rápido possível.
Pedro a deixou sumir na mata, mas na desistiria fácil. Aquilo não era vida. Tinha que se redimir com Rebeca.
Apenas uma pessoa que usa a literatura e o cinema para fugir desse mundo cão. Escrever é apenas um ato e exercício de liberdade!